Jornal Poiésis
UNIFORMIDADE VERSUS UNICIDADE

Camilo Mota
Observar a realidade de maneira fenomenológica nos possibilita experimentar uma multiplicidade de ângulos para nos trazer algum entendimento sobre essa grande colcha de retalhos em que a sociedade contemporânea nos envolve. Podemos nos deparar com uma enorme quantidade de sensações que atravessam nossa subjetividade, ora transformando-a, ora cristalizando-a em sistemas rígidos de interpretação do mundo. Há momentos em que admitimos a rebeldia, a revolução, e, no entanto, por vezes nos apegamos às tradições e normas que se grudam ao desejo e não o deixam fluir.
“A subjetividade, de fato, é plural, polifônica”, afirma Félix Guattari. E continua, “ela não conhece nenhuma instância dominante de determinação que guia as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca”*. A prevalência desse movimento de contínua transformação é uma marca da contemporaneidade, que é a expressão de um mundo realmente polifônico, no qual vozes podem ser ouvidas a partir de sua origem e não por representações. É o caso, por exemplo, do discurso feminista, do papel da mulher sendo representado por ela mesma e não pelas imposições de gênero de uma cultura patriarcal. A mesma polifonia pode ser sentida no fluxo do lugar homossexual, do movimento negro, dos que buscam inclusão por se saberem membros de uma mesma humanidade.
No entanto, nos deparamos com o contraditório em operação na sociedade atual, na qual a uniformidade procura se sobressair diante da unicidade.
Trago o tema nesta semana em que se celebra o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) porque uma notícia de jornal demonstra o caminho na contramão que o país tende a trilhar nesses tempos de enrijecimento mental. O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, publicou uma portaria mudando as regras para seleção e publicação dos nomes e biografias de personalidades negras notáveis**. A partir de agora, apenas pessoas mortas poderão ser homenageadas, e mesmo assim a partir de uma postura moralizante imposta pela instituição, e explícita num dos itens de justificativa da homenagem, a saber, estar em concordância com os “princípios defendidos pelo estado brasileiro”. O sentido polifônico expresso pelas inúmeras realizações e contribuições de pessoas pretas nos mais diversos cenários estará sendo coibido por um discurso único, centralizador, conservador e, simbolicamente, muito bem configurado ao se incluir “mortos” e não “vivos” dentro do fluxo de expressões a serem representadas.
O movimento negro é plural e vivo. Está na fala da filósofa Djamila Ribeiro, no samba, no funk e no rap da periferia, nos grupos que se reúnem e debatem temas fundamentais como o combate ao racismo. É um grande fluxo de subjetividades que se encontram nessa polifonia, dando sentido e voz a quem sente na pele (literalmente) o olhar desviante de uma sociedade que carrega a herança escravocrata no sangue. A unicidade se estabelece quando acolhemos as vozes que saem da marginalidade imposta pela hierarquia conservadora de uma sociedade que não quer enxergar a própria diversidade que a compõe. O dia 20 de novembro é um ponto de confluência de saberes, da possibilidade potencial de criarmos uma sociedade justa para todos, rica porque sabe ser múltipla.
NOTAS
*GUATTARI, Félix. Caosmose, um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. 2ª edição. São Paulo, Editora 34, 2012.
**GOMES, Pedro Henrique. Lista de personalidades negras da Fundação Palmares passará a ter apenas homenagens póstumas. Portal G1. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/11/11/lista-de-personalidades-negras-dafundacao-palmares-passara-a-ter-apenas-homenagens-postumas.ghtml> acesso em 14 de novembro de 2020.
Camilo Mota é licenciado em História, psicanalista e terapeuta holístico, membro da Academia Araruamense de Letras, e editor do Jornal Poiésis.