Jornal Poiésis
Uma leitura sociológica de “Faroeste Caboclo”

Leonardo Soares*
Renato aproveitaria o fato da “história de vida” por ele criada ser contada por meio de uma música para fazer uso de certos artifícios para realçar as diferentes fases da vida (infância, adolescência etc.) de João de Santo Cristo. Cada mudança experimentada era acompanhada na narrativa por um estilo musical diferente: a Moda de Viola no lugarejo do interior da Bahia, o Baião na passagem por Salvador, o Reggae quando se torna comerciante de drogas ilícitas na periferia do Distrito Federal e o Rock pesado a partir do momento em que se afirma como expoente da marginalidade da cidade.
Eram dois os fatos mais marcantes do contexto da música (escrita em 1979): a grave crise econômica vivenciada pelo país (que não parava de crescer desde a primeira crise do petróleo em 1973), evidenciada pelo arrocho salarial e inflação galopante. O que era agravado por processos sociais que estavam fugindo de controle: explosão demográfica das grandes cidades, favelização, agudização da violência urbana, precarização das condições de moradia, transporte e trabalho etc.
Outro fato era a instabilidade política do país, gerada principalmente pela resistência articulada pelos setores mais reacionários das forças armadas contrários à “abertura política” que o governo Figueiredo vinha patrocinando. Tais setores chegaram a patrocinar atos terroristas com uso de bombas para provocar o medo e o caos, de modo a favorecer um novo golpe para sustar a transição democrática.
Curiosamente, a história de vida de João não é narrada do começo. Renato inicia do ponto em que João tinha acabado de iniciar o movimento tão comum a homens jovens como ele, que era sair de sua localidade do meio rural do Nordeste rumo a um centro urbano mais estruturado em busca de melhores meios de sustento. Foi o que João procurou assegurar ao deixar “pra trás todo o marasmo da fazenda.”
Mas o fazia também com um intuito peculiar, e não apenas com o objetivo de ascender socialmente: mas para poder “sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu.” Visão compartilhada pelas pessoas sobre João, um homem que não tinha medo e que a partir de certo momento “se perdeu”.
E é para entender o momento desse desvio que Renato faz um pequeno recuo a infância de João. Infância sofrida. Típica de uma criança pobre do interior, de extrema precariedade. Que só piora ao ser atingido pela violência policial, “com um tiro de soldado o pai morreu”, chaga comum sofrida pelas pessoas mais vulneráveis no Brasil, principalmente a juventude de sexo masculino.
Os abusos e violências produziram várias sequelas na vida da criança: problemas de relacionamento (“Era o terror da cercania onde morava”; “Sentia mesmo que era mesmo diferente/ Sentia que aquilo ali não era o seu lugar”), racismo (“Discriminação por causa da sua classe e sua cor”); vida sexual precoce (“Comia todas menininhas da cidade/ De tanto brincar de médico, aos doze era professor”) e as práticas delitivas (“Quando criança só pensava em ser bandido”; “Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro”) davam o tom da sua curta e desprotegida infância.
Existência exemplar de uma criança interiorana, pobre e negra. Mas desde essa época seduzido pelo fetiche do consumo difundido pelos meios de comunicação (“Ele queria sair para ver o mar/ E as coisas que ele via na televisão”).
Mas as coisas pioraram com a perda da mãe aos 15 anos. Sendo mandado por isso para um reformatório, lugar em que vivenciou mais uma experiência de brutalidade, “onde aumentou seu ódio diante de tanto terror”.
Uma nova etapa se abre com a ida a Salvador, um centro urbano mais estruturado. Lá encontra uma possibilidade, junto a “um boiadeiro”, para ir à Brasília. Seguia assim um fluxo muito percorrido por milhões de nordestinos desde a década de 1950.
Lá chegando se emprega em várias atividades, de baixíssima remuneração (“Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro/ Ganhava cem mil por mês em Taguatinga”).
Nesta cidade encontraria um parente seu, que já estava trabalhando ali. Prática muito comum entre os migrantes: buscar familiares ou amigos como forma de constituir uma rede de proteção e de indicação de empregos. Assim conheceria Pablo, “um peruano que vivia na Bolívia/ E muitas coisas trazia de lá”, e que pretendia começar um “negócio” com essas “muitas coisas”. Era uma porta que se abria a João, só que na ilegalidade.
Alternativa importante, já que pela via da legalidade a precariedade falava mais alto, visto que “até a morte trabalhava/ mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar”. Pudera, eram tempos de grande arrocho salarial vivenciados ao tempo do governo Figueiredo. O desalento com o governo era notório: “E ouvia às sete horas o noticiário/ Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar”.
Frustrado, João “decidiu que, como Pablo, ele iria se virar” e “a plantação [de maconha] foi começar”. O alto consumo proporcionado pela clientela renderia ampliação dos ganhos de João. Ele já não buscaria diversão na “zona da cidade”, mas na privilegiada Asa Norte, indo à “festa de rock pra se libertar” junto à classe média jovem da cidade. Mas seriam os mesmos, os “boyzinhos da cidade”, que - não se sabe como – teriam estimulado João a roubar.
Em pouco tempo seria encarcerado, viveria situações degradantes no presídio, experimentando “violência e estupro do seu corpo”.
Mas logo a seguir conhece Maria Lúcia, com a qual João “queria se casar”. Para marcar a possível “redenção” do “bandido/ Destemido e temido no Distrito Federal”, Renato aciona novamente a moda de viola como fundo, como que simbolizando o possível resgate do menino João, o menino ainda puro e inocente da fazenda dos confins da Bahia. Provavelmente o João de antes do assassinato do pai. O poder regenerador da “menina linda” parece tão evidente, que João se vê estimulado a se afastar do banditismo. A partir deste momento, ele se vê novamente imbuído da ética cristã do trabalho digno, até “carpinteiro ele voltou a ser”. Ética de implicações morais, visto que João passa a pretender constituir família dentro do padrão cristão (“um filho com você eu quero ter”).
Renato aqui faz uma pequena inversão do mito da “mulher que desvia o homem do bom caminho”, como em “O Mulato” de Aluísio Azevedo (embora aqui o mito seja na verdade o desenvolvimento de uma tese racista do pensamento social da época). Ele prefere abraçar, o que seria mais coerente com a história, outro: a noção típica de uma sociedade patriarcal da mulher como cuidadora, capaz de regenerar criaturas descaminhadas. Mito de profunda raiz religiosa, em especial pelo segmento católico. Muito presente aliás na literatura de cordel.
Aliás, os nomes João de Santo Cristo, Maria e Jeremias são emblemáticos da perspectiva católica explorada pelo compositor, apostando nos efeitos que isso teria para a compreensão do sentido da narrativa: uma luta entre o bem e o mal.
Um parêntese necessário: esse não é único mito que Renato lança mão para dar maior sentido a sua narrativa (questão que analisaremos mais adiante em Alessandro Portelli). Os mitos são poderosos na medida em que eles dão inteligibilidade a uma trajetória, lhe emprestando sentido, direção e linearidade. Fazendo-nos ver numa trajetória cheia de acasos, encontros aleatórios e desvios, apenas coerência e lógica.
Um mito que aparece espalhado na letra é o da pureza do homem do campo, ser ingênuo e incorruptível, em que pese as condições de miséria e ignorância, o que faz dele a reserva moral de um país moralmente degradado e injusto. Mito presente em Os Sertões de Euclides, e que reaparecerá com força em “São Bernardo” de Graciliano, em “Pagador de Promessas” de Dias Gomes, e em “Deus e o diabo na terra do sol” de Glauber.
Esse mesmo mito dará o tom da última estrofe da música: o João de essência camponesa, clamando por justiça frente a elite política corrompida do Brasil moderno em favor de toda a sua “gente” do Brasil profundo, excluído e explorado.
Novamente o enredo da história.
O poder regenerador de Maria Lucia era apenas mito. A realidade se impunha. As dificuldades do casal em garantir os meios materiais de subsistência eram permanentes. O contexto de penúria e degradação do vivido pelo governo Figueiredo era impiedosos com os segmentos mais pobres da população, e deles faziam parte João e Maria.
A dureza era inescapável, consciente disso, João deixava em aberto a possibilidade de investir no mundo da ilegalidade. Mas até para o crime era necessária alguma ética. No meio de tanta aflição João recebe a proposta de um general da “linha-dura”, a que queria sabotar de todo o jeito o processo de retomada da democracia. Tratava-se de uma “proposta indecorosa” que consistia em plantar bombas contra bancas de jornal e colégios. Era a face terrorista da extrema-direita, repudiada por João.
A recusa lhe custa caro. É ameaçado de morte. O que deve ter contribuído para a instabilidade psicológica, fato que aprofunda o seu problema com o alcoolismo. Resultado: fica desempregado.
A prática delitiva já não é uma possibilidade, mas uma necessidade. Tenta retomar os contatos com Pablo, antigo fornecedor de drogas. Mas então descobre que os pontos de venda em Planaltina, cidade-satélite, já eram controlados por Jeremias. E o próprio comércio já não é o mesmo de anos atrás, com pequenas vendas em festinhas. O negócio de drogas havia se tornado mais complexo. Envolvia agora o controle de territórios, a concorrência era mais acirrada. Fato esse que estimularia a intensificação do uso de armas entre seus operadores, daí a necessidade de João em adquirir a tal da Winchester-22.
Os conflitos se intensificam com Jeremias. Sujeito que tinha práticas condenáveis (ser crente, mas comer virgens e vender maconha), curiosamente as mesmas práticas das quais João tanto se gabava.
Num intervalo das suas atividades, ele retorna a sua casa e se depara com a infidelidade conjugal de Maria, e justamente com Jeremias. Tal infidelidade, equiparada ao tempo em que foi barbarizado numa penitenciária, evoca em João a necessidade de “defesa da honra”, que na sua mentalidade profundamente enraizada numa sociedade machista implicava no assassinato de Jeremias, “porco traidor”, e de Maria, “aquela menina falsa pra quem [ele jurou] o [seu] amor.”
A “defesa da honra” – noção cara aos homens das classes mais pobres da população - se daria por meio de um duelo “às duas horas na Ceilândia/ Em frente ao lote 14”. Uma prática tradicional que ainda vigorava nas localidades mais interioranas, ainda enraizadas entre parcelas dos migrantes que se fixavam nas periferias dos centros urbanos. Mas uma prática que ao se inserir num contexto “mais avançado”, o do Brasil moderno e urbano, se vê confrontado com aspectos dessa modernidade: o duelo é simplesmente televisionado. A Via-Crucis tornada circo evidencia a crescente espetacularização da violência, em especial a violência que grassa nas periferias brasileiras, cujo filão catapultaria inúmeros comunicadores ao estrelato, inclusive político, nas décadas seguintes.
O desfecho consagra a perspectiva de João, que mesmo gravemente ferido, ainda encontra forças para exaltar valores típicos de um ethos patriarcal: “Jeremias, eu sou homem, coisa que você não é”.
Visão consagrada pelo “povo” que reconhece em João um homem honrado, que soube morrer com dignidade, mostrando ser “homem” até o fim: santo, portanto.
Na última estrofe vemos o narrador tentando, ele mesmo, dar a sua interpretação sobre a trajetória de vida de João. Aqui João não é mais o jovem que sai de Salvador em busca do sonho de consumir os produtos e o estilo de vida anunciados pela TV, mas um membro do povo que se via na missão de tentar redimi-lo junto aos poderosos:
“E João não conseguiu o que queria Quando veio pra Brasília com o diabo ter Ele queria era falar pro presidente Pra ajudar toda essa gente que só faz Sofrer”
*Leonardo Soares é Professor de História – UFF/Campos