Jornal Poiésis
Um convite catastrófico

Ocasionalmente nos deparamos com situações desastrosas nas quais temos que reorganizar nossa rotina e, quiçá, nossa vida. O término de uma relação (amorosa ou não), a notícia da maternidade/paternidade e a morte de um ente querido podem ser exemplos de tais situações. São experiências com intensidades, durações e contextos distintos, mas todas (no que interessa ao presente texto) carregam uma marca comum: a suspensão, ainda que temporária, da lógica prática, acomodada e repleta de certezas que domina nosso cotidiano.
Isto porque a face adaptativa de nossa natureza se encarrega de nos proporcionar um modo utilitário de existir no mundo, onde nossas percepções, lembranças, raciocínios e ritmos da atenção se reúnem num acordo harmônico e oferecem um sentido, uma imagem do mundo e de nós mesmos de fácil reconhecimento, fundada numa cronologia entre origem e finalidade, marcada pela determinação: eu sou “fulano”, tenho “tantos anos”, minha meta é “tal”, sempre fui e serei uma pessoa “assim e assado” e etc; dessa forma, nos alimentamos de um modelo subjetivo que se expressa a partir de marcas de reconhecimento - aquilo que procura, apesar de toda a singularidade e constante diferenciação que nos habita, nos afirmar como os mesmos, com os mesmos apetites, desejos, inclinações, com personalidade bem definida e, frequentemente, justificada numa pretensa história familiar.
Ainda que a face adaptativa seja importante para um determinado nível de discussão (ex: oferecer um senso de identidade para agir no mundo), o que venho aqui denunciar é o alto grau de dependência que criamos com essa maneira de existir, de modo a torná-la um modelo dominante e automatizado. Até assumimos que as situações desastrosas que citei acima têm o poder de suspender, por instantes, este circuito adaptativo. Todavia, geralmente elas não passam de um evento desastroso, isto é, um obstáculo disruptivo a ser apaziguado com vistas à nossa reacomodação ao domínio do reconhecimento. A inquietação que proponho é esta: o que pode acontecer caso hesitássemos em rebater o desastre com ações e saberes codificados por nossa maneira de ser já conhecida? qual é a indicação do desastre? como operar a passagem do desastre à isto que chamarei de catástrofe? enfim, qual o afinamento da catástrofe com a saúde e o pensamento?
Ora, se o desastre opera uma suspensão da lógica utilitária dominante, ele já indica que, apesar da nossa estrutura subjetiva operar, por uma necessidade prática e social, gestos identitários, somos tecidos por dimensão marcada pelo inacabamento de nós mesmos e que, portanto, nossos saberes serão sempre parciais e insuficientes frente ao caráter acidental e imprevisível da vida. Hesitar e desautomatizar esta lógica indica um retorno à experiência: alternamos entre adaptações e desadaptações, uma coexistência da produção de saberes com a sua própria crise que implica uma passagem para a invenção de novos modos de existência. O desastre tem a potência de um alargamento, ele informa nossa natureza indeterminada e a incessante necessidade de nos reinventarmos a cada desastre. Em suma, o desastre, quando cuidado e não rebatido, exprime um convite catastrófico: na medida em que sua aparição acidental é acolhida e investida num acompanhamento afetivo e sensível às novas estruturações de nossa existência, o desastre se torna catástrofe - desestruturação de si que evoca novas maneiras de experimentar e inventar nosso território subjetivo.
Se a experiência nos indica que somos seres inacabados, a saúde sintoniza com uma atenção cuidadosa a esses convites catastróficos que nos constituem e nos tecem diariamente. Isto que chamamos de momento presente não seria justamente um campo povoado de desastres, verdadeiros convites às catástrofes? Uma profunda frustração pessoal ou profissional, uma perda dilacerante, apesar da baixa potência de vida que experimentamos, caso acolhida e cuidada não poderia sinalizar a emergência de novos mundos e novas estruturações de si? Essa alternância entre estruturações e os momentos em que nossa atual estrutura se exprime obsoleta e inadequada não corresponde ao concreto e real plano de nossa existência? Uma ética da existência que toma o pensamento como força de hesitação ao fechamento utilitário e identitário, capaz de conceber o alargamento das possibilidades de existir e a saúde como uma atenção cuidadosa e sensível aos acontecimentos que nos constituem, é o que proponho como inquietação epistemológica e consideração diária.
*Israel Tebet é colunista no LaSP, graduando e pesquisador em Psicologia/UFF - Grupo “Individuação, subjetividade e Criação” nos diretórios do CNPq. Contato: israeltebet@gmail.com