Jornal Poiésis
Seremos todos cancelados
Atualizado: 1 de mar. de 2021

Flávia Joss*
Observei durante a semana que muito se falou sobre ‘cancelamento’ devido a um reality show na TV aberta. Sem querer bancar a intelectual, adianto que não assisto ao citado programa, nunca assisti por pura falta de interesse. Falo sem preconceito com aqueles que até fazem pacotes exclusivos a fim de terem acesso 24h ao programa. Explico antes que me ‘cancelem’.
Em 2019 a tal cultura do cancelamento virou modismo e foi eleito o termo do ano pelo dicionário Macquaire. Muitos artistas, blogueiros e celebridades foram ‘cancelados’ por se comportarem de modo politicamente incorreto. Sabemos que os tempos são outros e que a sociedade se transformou. Lembro-me dos programas de humor da década de 80/90 em que abundavam piadas de cunho racista, homofóbico, misógino dentre outras coisas. É óbvio que não há mais espaço para tais ‘brincadeiras’ no mundo em que vivemos. Lutamos contra toda e qualquer forma de preconceito. É imprescindível ter responsabilidade sobre o que falamos e fazemos. Contudo, algo tem chamado minha atenção: a banalidade com que a prática do ‘cancelamento’ acontece.
Percebo as pessoas tensas, atentas às suas palavras pois “tudo que disser poderá ser usado contra você”, tem sempre alguém pronto esperando um ‘vacilo’ para nos ‘cancelar’. Até nas conversas informais... Lógico que quando se fala em cancelamento, o foco está em pessoas que têm alguma relevância nas mídias sociais, porém a expressão já caiu no gosto do povo e tem sido usada sempre que há uma oposição entre os interlocutores. Uma chatice, diga-se de passagem.
Vivemos o conflito das gerações X versus Y, e da intolerância travestida de conscientização e justiça social. São poucos os que estão dispostos a dialogar e, de fato, respeitar as diferenças ideológicas, o que é um paradoxo, já que diálogo e respeito fazem parte do vocabulário dos jovens politizados do século 21. A cultura do cancelamento afasta e tenho minhas dúvidas quanto a sua eficácia. Rechaçar alguém porque pensa diferente é pura arbitrariedade, nos tornamos juízes implacáveis no tribunal virtual e caminhamos a passos largos por uma estrada onde não podemos ver o final. Peço perdão pela visão um tanto pessimista do presente tempo, tenho certeza que, em algum momento, independente do papel que ocupamos, seremos todos cancelados.
*Flávia Joss é Professora de Língua Portuguesa e Literatura, especialista em Gêneros textuais e Interação. Possui cursos de aperfeiçoamento nas áreas de Arte& Espiritualidade, Escrita Criativa e Poesia Falada.