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Segunda pele

Atualizado: 24 de out. de 2021



Flávia Joss


Quem acompanha a coluna Palavra, verso & reverso, sabe que sou professora. Estou no magistério há 27 anos, e em todos esses anos, atuando em sala de aula. Ali pude conhecer histórias inimagináveis, crescer e aprender enquanto profissional, mas principalmente enquanto ser humano. Trago hoje uma crônica que está publicada em meu livro, Histórias e Memórias, que é um passeio pelas minhas reminiscências, minhas “escrevivências” sobre a aventura que é ser um professor.


Segunda pele


Tenho a sensação que todo adolescente tem um casaco de estimação. Observo como este objeto tem se tornado uma peça inseparável, o que me causa muito espanto pois moro em São Gonçalo, uma das cidades mais quentes do Rio de Janeiro. No verão, não duvide, sinto a baforada quente do inferno cada vez que abro a janela. No caminho de casa para o trabalho, vejo os meninos escondidos dentro de casacos enormes, grossos e de capuz, se eles fossem filhos da minha mãe, com certeza, teriam ouvido “Se vier o frio que você está esperando os pinguins vão morrer congelados.”


Acho que esse vestuário funciona como um esconderijo, uma caverna, uma proteção. Os mais tímidos são os que mais se cobrem, mesmo com o ar condicionado funcionando precariamente, estão sempre de casacos em punho. Talvez não queiram ser vistos ou, quem sabe, precisam muito ser notados.


Sempre desfruto da companhia de alguns alunos durante o retorno para casa. Assim como eles, moro no entorno da escola, então, seguimos a pé. Foi nesse instante que reparei no meu acompanhante de todos os dias. Vi que durante aquela semana ele não tirava sua segunda pele, embora durante a caminhada umas gotinhas de suor se formassem em sua testa e acima dos lábios. “De onde vem esse frio todo?”, perguntei em tom de brincadeira. Ele não respondeu com palavras, apenas puxou a manga do casaco e estendeu o braço em minha direção. Manchas roxas e arranhões se espalhavam... imaginei um acidente e antes que eu fizesse a clássica pergunta, ele explicou: “Contei pra minha mãe, uma mulher super moderna, sobre minha orientação sexual... depois da histeria, pegou o cinto do meu padrasto e me deu uma surra. Acho apanhar de cinto uma coisa muito cafona! Mas foi o que me restou. Modernidade só existe quando gay é o filho dos outros.”


Fui surpreendida pela forma irônica e até bem humorada com que me contou esse dramático episódio de sua vida. Porém, eu sei bem o que é uma ironia... De imediato lembrei-me do belíssimo samba do inesquecível Cartola:


Deixe-me ir preciso andar

Vou por aí a procurar

Rir pra não chorar.



Flávia Joss (@flaviasjoss_) é escritora, professora de Língua Portuguesa e Literatura, especialista em Gêneros textuais e Interação. Possui cursos de aperfeiçoamento nas áreas de Arte& Espiritualidade, Escrita Criativa

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