Jornal Poiésis
Saudade

Flávia Joss*
A saudade é o perfume
Que o amor deixa
Na gente
(Lucão)
Acordei ao som da chuva, levantei e abri a janela, um cheiro de terra molhada inundou meu quarto. Fechei os olhos e mergulhei no rio de lembranças.
Hoje é dia 22 de setembro, aniversário da minha cidade e aniversário do meu avô. Durante muitos anos o 22 de setembro era previsível. Pela manhã íamos assistir ao desfile cívico da cidade, eu, minha mãe e minha irmã. Achávamos divertido, a banda era a atração mais esperada. Os políticos locais aproveitavam para fazer campanha, apertavam nossas mãos e sorriam cinicamente. A circunstância acrescentada ao verbo só é nítida agora, nos tempos de menina a inocência era um presente. Depois, almoçávamos com meu avô. Eram tardes agradáveis, a casa cheia de tios e primos, vovô fazia pastel. Os netos ficavam em volta vigiando, pois ele era peralta e assim que nos distraíamos, fazia um pastel grandão recheado com papel para ver quem seria o neto mais guloso. Alguém sempre caía na pegadinha e nós gargalhávamos.
Há mais de vinte anos não temos a presença do seu Arlindo Bento... Porém, a figura dele é completamente inesquecível. As conversas sobre política, as invenções do nosso “Professor Pardal”, as comidas que fazia e os “fatos pitorescos”, expressão que usava sem economia. Uma vez ele chegou em casa com uma almofada que, ao ser apertada, liberava um som de pum. Pegou a almofada e colocou abaixo do assento do sofá e ficou aguardando quem sentaria primeiro. Como ríamos dessas brincadeiras...
Eu amava quando ele me chamava ao seu quarto e ali me mostrava seus poemas, suas peças de teatro. Ele me apresentou a poesia. Uma vez leu poema que eu achei tão triste... tinha um refrão que dizia “Pobre Arlindo!”. Mais tarde descobri que era adaptação de A catedral, do poeta Alphonsus de Guimaraens. Ele gostava dos poetas parnasianos, eu não sou muito fã. Se ele estivesse vivo, certamente discordaria do meu gosto poético. Gosto mais dos modernistas e dos contemporâneos. E ele me diria sobre os últimos “Esses poemas são uma esculhambação!”, outra frase que abundava em seu vocabulário.
A saudade me vestiu nesta manhã... Meus filhos não o conheceram, todavia o revivemos através de suas histórias e brincadeiras. Assim, eles podem imaginar o bisavô e compor suas memórias.
*Flávia Joss é Professora de Língua Portuguesa e Literatura, especialista em Gêneros textuais e Interação. Possui cursos de aperfeiçoamento nas áreas de Arte& Espiritualidade, Escrita Criativa e Poesia Falada