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SACRIFICIUM, DE DANIEL MAZZA
Atualizado: 8 de mai. de 2022

Gerson Valle
Às vezes pode parecer difícil o limite da Poesia com o inefável místico, fantasioso ou sonhador. As religiões permeiam tudo isto em sua essência. Mas a institucionalização que as secularizam materializam-nas a ponto de não lembrarmos mais o sentido de suas origens. De certa forma a Poesia também, em certas escolas, pode permear objetividades mais próximas de narrativas prosaicas, chegando mesmo a se ater apenas a formalismos que a querem tipificar, quando é o intuito de uma perspectiva metafórica, alegórica, simbólica, em parábola do mundo que a situa significantemente. O livro “Sacrificium”, de Daniel Mazza (Mondrongo, Bahia, 2021), reverte a Poesia contemporânea ao ânimo inefável trazido de suas origens. Está na poesia do Antigo Egito, no oriente, em Homero, passa por toda a cristandade medieval, tendo seu ápice em Dante, nada parecendo mais próximo ao subjetivismo poético que as sensações, intuições, apreensões místicas do ser humano. Por mais que a racionalidade dos iluministas e o materialismo do século XIX tenham marcado um afastamento científico das abstrações místicas, as indefinições psíquicas do “spleen”, um gosto tentado pela embriaguez, a índole amorosa, a perquirição do nunca acabado conhecimento, ou seja lá que outros percursos existenciais nos colocam frente aos mistérios jamais decifrados, as questões ditas do espírito nunca perdem sua primazia. A título de exemplificação, o jovem Paul Claudel, de formação ateia, em plena Paris dos intelectuais materialistas de 1886, sente-se em “estado de conversão” num concerto da Missa Solene de Beethoven na Catedral Notre Dame de Paris, e para o resto da vida sua poesia refletirá as “verdades reveladas” dos evangelhos cristãos. E ele mesmo chamará de “mística em estado selvagem” as “Iluminations” de Arthur Rimbaud, que antecede grande parte dos diversos “modernismos” da poesia do século XX. Como nos versos de “Zone” de Guillaume Apollinaire: “C’est le Christ qui monte au ciel mieux que les aviateurs / Il détient le record du monde pour la hauteur” (“É o Cristo que sobe ao céu melhor que os aviadores / Ele detém o record do mundo pela altura”).
No Brasil, dentro do Modernismo, poetas como Jorge de Lima e Murilo Mendes, tangenciando o surrealismo tocaram plenamente na mística católica (que esteve, aliás, presente na primeira fase de Vinícius de Moraes). O imagético nos versos é também um elemento fascinante muito evidenciado no livro em questão de Daniel Mazza. Os títulos de suas quatro partes já nos remetem à crença cristã: “O túmulo vazio”, “O calvário”, “O deserto”, “Sacrificium”.
A força dos versos, normalmente realçados pelo decassílabo heroico, em raras rimas, passa não só pelo mundo de primazia cristã como revê existências e possibilidades coexistentes de deuses pagãos (o que, de certa forma, nos faz reverter a Camões e grande parte do Classicismo). As questões religiosas, entretanto, não estão sempre expressas claramente, ficando preocupações filosóficas nelas de certo nascidas a meio da divagação poética e metafísica:
“Porque infinitas gotas de instantes Nunca enchem um mar de eternidade. Nem infinitos pingos reunindo-se Nas bacias das nuvens para a chuva Despejar, nunca são a própria chuva.”
Há certo desencanto, por vezes, com a realidade que nos aponta a distância das crenças, como no poema “Parábola do mundo”:
“O ser aprisionado entre as muralhas Do que é a consciência e o que é visível, Em um mundo de absurdos, onde o mundo É por certo o maior dos absurdos.”
Recomendo a leitura de todos os poemas do livro para quem sente a necessidade da Poesia construída substancialmente por elementos envolventes e fortes.
Antecedo aqui apenas um de seus momentos em um dos tantos poemas de 14 versos, que se apresentam como um soneto bem próprio à maneira do autor, que tem a personalidade de um poeta distinto muito louvável:
“Eis então o porquê do desespero Das mulheres ao verem o sudário Sobre a pedra vazia. É que nunca antes Na história do mundo um ser humano Ressuscitou dos mortos. E o escândalo Da vinda anunciada do Deus-Vivo Começara... E a angústia da razão Dos apóstolos quase os deixou loucos! Mas o toque nas chagas pelo dedo Racional de Tomé, o pão comido Na presença de Pedro que O negou, Fez os onze entenderem que a razão Nunca pode ir além dos seus limites, E que a verdade do homem não é o homem.”
Gerson Valle é poeta e escritor, membro da Academia Petropolitana de Letras.