Jornal Poiésis
QUINTO POEMA (COM UM PINGO DE PROSA) EM TEMPO DE QUARENTENA
Atualizado: 22 de jun. de 2020

Gerson Valle*
Ao pintor amigo Cosme Martins
A favela vista ao longe
parece um presépio lindo.
De dia, traços abstratos.
À noite são vagalumes.
A favela, dentro dela,
é o povo sem espaço,
atravancado em cubículos,
e urbanismos de improviso.
Sem saneamento básico,
pisa-se em poças de esgoto,
e a casa cheirando a mijo
serve amor numa só cama.
Na cidade do Rio de Janeiro, um terço da população vive em favela. Dois milhões de pessoas sem saber onde termina sua vida e começa a do vizinho. Se andar sem se esbarrar é possível, dentro da dimensão dos corpos malabaristas desse circo. Se há condição humana de se ter eletricidade sem se roubar os fios ligando a existência do mundo ao amontoado de gente ali vivente. Sobrevive-se fora de uma explicação lógica. Tudo lá é milagre. A existência, uma constante integração com seu par a todo lado. E estes pares nada sabem, só tendo como escola a necessidade. Sobrevive-se, violentando-se o indivíduo em suas idiossincrasias. Insurgem-se por feitos notáveis, dentro ou fora da legalidade. Mais forte que a morte olhando em todo canto é a vitória driblando o dia, as investidas contra as carências, as violências dos inimigos poderosos, patrões desprovidos de empatia e bandidos medrosos de si mesmos com a polícia desrespeitosa, invasora, a se dissolverem em tiros. Tudo se conjuga a ser ali o lugar da sociedade a nascer e renascer, a origem de tudo, destino que Deus deu aos homens aqui na Terra.
Só se pode desejar
que esta valentia toda
sobreviva à natureza,
que não tem amizade a ninguém,
em sua nova invenção
de transmitir por abraços,
beijos de improviso,
bafos das falas,
tosses e espirros,
a impertinência de um vírus.
Gerson Pereira Valle é escritor e poeta, ocupando atualmente o cargo de presidente da Academia Petropolitana de Letras. Tem diversos livros publicados, entre os quais “Vozes trazidas pelos ventos” (Poiésis, 2005) e “Dentro da mata densa” (Thesaurus, 2013). Autor do libreto da ópera Olga, composta por Jorge Antunes, sobre a vida de Olga Benário.
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