Jornal Poiésis
Quarentena sem luz?
Atualizado: 21 de set. de 2020

Matheus Fernando
Era uma noite comum de quarentena. O mundo interagindo pelo online, os algoritmos brigando entre si de tanta live, grupo de estudos da faculdade sobre psicanálise e laço social acontecendo e eu com fome. Muita fome - até então, nada incomum.
O primeiro pensamento foi, “será que sobrou um pouco daquele macarrão com feijão do almoço?” Até que fui interrompido por um apagão que teve em toda Terra, ou pelo menos na minha. Faltou luz!
Faltou luz e eu percebi o quão vulnerável nós somos. O primeiro impulso que me veio de imediato fora trancar a porta já que alguns pavores de infância me vieram à tona. Logo em seguida senti a sensação de impotência e vulnerabilidade que é não poder contar com o sentido que mais usamos e dependemos: a visão.
Uma sensação de não ter onde pôr a mão… uma sensação estranha ter que cozinhar sem poder contar com esse sentido. E enquanto empreendia esse projeto aparentemente simples tive um momento de compaixão pelos meus amigos cegos que não contam com este recurso. Não poder ver o pôr do sol, não poder ver o sorriso do seu amor.
Sim, eles contam com outras formas de olhar. E durante esse processo de ter que tatear no escuro para achar uma cadeira para sentar, de pela textura do objeto ter que discernir o que era uma colher de pau ou de silicone e tantas outras coisas aparentemente simples de se decidir e fazer… percebi que talvez eu seja o cego.
Ontem no escuro eu entendi o que a Lygia Clark chamou de “A trivialidade do olhar.” Ela referia-se ao quanto somos “escravos” desse único sentido. Ter que cozinhar pelo cheiro, ter que discernir o ponto do tempero única e exclusivamente pelo paladar. Ter que em muito, tatear pelo escuro da casa para encontrar algumas coisas. Eu fui do pânico à gratidão.
E pensar que poucas décadas atrás não contávamos com este recurso hoje tão fundamental. Em duas horas a luz voltou e então saí daquele êxtase de reflexões. Já tinha comido meu projeto de jantar e já era a hora de dormir. Antes de deitar me ajoelhei ao pé da cama e fiz alguns minutos de reverência ao querido Thomas Edison...
Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo. matheusfernando.contato@gmail.com