Jornal Poiésis
Porque hoje é dia de Jorge

Marcelo J. Fernandes*
Minha adorável avó Didi, materna e espanhola, tinha algumas prerrogativas peculiares, e dentre elas, uma era a de fazer promessas para que o agraciado a cumprisse, não ela. O bom é que ela era ouvida, e , quase sempre, os votos eram pagos, de bom grado.
Quando eu tinha cinco anos, lembro que, naquele longínquo ano, ela pegou um táxi comigo e, curiosamente sozinhos, zarpamos até o Campo de Sant'Anna, quase de madrugada. Eu talvez ainda não perguntasse por quê e apenas curti a viagem num fusca sem o banco do carona. O dia estava chuvoso e combinava com a fachada de uma igreja pequena, cinzenta, gradeada e com uma fila extensa, onde muitos camelôs vendiam fitas e velas vermelhas, apregoavam coisas.
Enquanto nos acomodávamos no final da linha, rojões e morteiros troavam próximos, e alguns soldados, solenes, davam toques de clarim, para minha surpresa e excitação, algum medo, em meio a tantas novidades.
Ao entrarmos na modesta nave, a fila de mesmo tamanho de fora acercava-se de um emaranhado de fitas que desciam de uma enorme imagem. Um guerreiro de armadura e elmo emplumado, reluzentes, vestindo uma larga capa vermelha, montado num majestoso tordilho, de tamanho natural! A cena me vem integral até hoje: o esplendor do pequeno altar cercado, as fitas, o cheiro das velas, os fogos, as novenas, as flores, os pregões.
Uma epifania.
Acho que desde aquele dia, de um todo raro e singular pra mim, passei a adorar os cavalos brancos e, sobretudo, aquele ginete.
Embora, quando nasci, eu tivesse sido salvo por Santa Catarina e Santa Teresinha, minha avó fizera uma promessa de me levar à igreja de São Jorge, em seu dia, na missa da Alvorada, caso eu ficasse bom da bronquite asmática que me fez consumir dúzias de balões de oxigênio. E assim foi. O santo ouviu a ela e fez outro ardoroso fiel.
Alguns anos mais tarde, levaram-me a um centro espírita. Uma entidade se aproximou de mim e mandou que eu fosse até o gongá, pedir a benção "ao meu pai": reconheci, prontamente, os mesmos cavalo e cavaleiro. Estava selado o meu desígnio.
Já rapazote, flanava sempre pelo Centro Velho do Rio, para descobrir os melhores sebos, os pastéis perfeitos, as papelarias mais sortidas, e de passagem pelo Saara, obrigatoriamente a Igreja de São Gonçalo Garcia era visitada e venerada, eu ia renovar os meus votos, fazer promessas menores, deixando sempre uma vela no cruzeiro, antes de sair pela porta lateral.
Casado e bem entrado nos trinta, depois de duas gravidezes infrutíferas e doloridas, minha ex-mulher me liga, no fim de certa manhã: "acabei de sair do obstetra, e seu filho vai nascer hoje!" Saí correndo pra ajudar a fazer a malinha, e no hospital, no início da noite, enquanto filmava o parto, perdi o foco e o ar quando o bebê veio à tona, à luz, e chorava comigo o primeiro choro.
Não foi promessa de avó. Mas era 23 de abril de 2001.
Era Dia de Jorge.
Por isso Pablo (comum acordo) Gabriel (pelo Gabo) e Jorge, claro. A escrevente questionou no cartório: "três nomes próprios?" Eu repliquei: "não estamos em Petrópolis?" Ela assentiu.
Era, como hoje, Dia de Jorge. E sempre será.
Marcelo J. Fernandes é poeta, escritor, doutor em Letras, membro da Academia Petropolitana de Letras e do conselho editorial do Jornal Poiésis