Jornal Poiésis
Por que ela não faltou naquele dia?
Atualizado: 9 de nov. de 2020

Matheus Fernando
Uma coisa que fico a pensar por vezes e que acho de uma sutileza singular são as nossas memórias. Que areia movediça. Elas vêm e vão. Organizam-se. Orientam-se. Ressignificam-se. Articulam-se. Sinapsam-se, se é que essa palavra existe. Sendo exatamente isso que tio Freud chamou de realidade psíquica. Essa coisa que não joga nada fora mas que se altera o tempo todo.
Falo isso porque tem matérias, aulas, momentos de aprendizado, semestres, que não lembro exatamente nada. Mas lembro às vezes de um dia, uma fala do professor, um movimento. É claro que quanto mais distante, mais difícil de trazer esses dias a uma estrada com luz, e isso ao mesmo tempo que me fascina me traz certo receio também. Fato é que se tudo que vivêssemos todos os dias, fosse de livre acesso, como um arquivo num drive que conseguíssemos acessar a qualquer hora … Não sei se quero voltar a alguns dias e eventos, tipo aquele filme “Efeito Borboleta”, sabe? Seria até perigoso.
As Neurociências dizem e comprovam que nós só lembramos de algo por duas vias: Grande impacto emocional e Repetição. Não lembro, por exemplo, dos conceitos da matéria de Percepção que por sinal tem prova na terça que vem. Mas lembro do dia em que um cachorro mordeu meu calcanhar quando eu tinha uns 12 anos. Inclusive das 5 vacinas que tive que tomar por causa daquele cão, e vale o trocadilho.
Falo isso porque eu não lembro muito de quase nada da matéria de Políticas de Saúde, a não ser que eu volte aos textos. Mas lembro com perfeição de um dia de aula em que era visível que ela não estava bem. Aqui a chamarei de Gravinha. E Gravinha naquele tempo estava grávida, e bem grávida. Digo assim porque aquele barrigão bonito já não passava despercebido ainda que de consideráveis metros de distância.
Sabe aquelas pessoas que quando são muito “brancas” quando ficam nervosas, ou vão falar em público, quando por algum momento estão apreensivas, ficam com o rosto bem vermelho? Pois é, assim que entrei em sala, percebi que ela estava desde o início da aula assim. E notei claramente que ela não estava bem. Ela já dava essa aula há anos, e cotidianamente ela não ficava vermelha feito tomate assim ministrando as aulas. Com o tempo notei que ela foi parando de falar, foi bebendo cada vez mais água, recostava a mão sobre a mesa como quem se apoia em algum lugar, talvez com um pouco de dor. É claro que ela não estava em condições de dar aula naquele dia. Com um barrigão bonito daquele, na minha visão, ela já era para estar em casa de repouso há bastante tempo. Já pensou se ela entra em trabalho de parto ali? Eu sou daqueles que antes de sair da sala desmaiaria só de ver o sangue.
Mas deixando o meu Parassimpático de lado e voltando a falar do dela, percebi os lábios secos, a garganta seca… A vontade que eu tinha era de levantar, olhar na cara dela como um daqueles médicos bem autoritários, apontar o dedo para porta e falar para ela ir para casa repousar. Não é possível que ninguém tivesse percebido naquele dia que ela não estava muito bem. Por que ela não tinha faltado? Poxa, ainda estava chovendo, frio. Em tempos assim as febres saem da toca para atacarem os humanos, as alergias saem dos bueiros para atormentar a paz mundial, principalmente em regiões de praia como aqui em Rio das Ostras.
Esse evento me trouxe à memória enquanto escrevo os dias em que chovia muito em São Gonçalo, de modo que a rua enchia tanto que ninguém conseguia sair de suas casas. E meu pai era o único, “responsável”, “comprometido”, “etc”, e sem noção que saía com água nos joelhos de casa para ir trabalhar. Eu sempre me perguntava por que ele não aproveitava, ligava para o patrão dizendo que não tinha como sair para trabalhar devido às chuvas, e ficava em casa fazendo nada? Brincando comigo e com meu irmão? Tocando sax? Ou fazendo outra coisa que ele realmente gostava de fazer. Eu compreendo a responsabilidade que todos nós temos com o mundo que nos cerca. Contudo, também sei, que quando ficamos doente tudo para, estaciona. Negligenciamos tanto algumas áreas da vida porque “temos que trazer a carne para a mesa”, porque tem alguns universitários remelentos em sala esperando (bem poucos, pois lembro que naquele dia mais da metade da turma tinha faltado) …
Como eu gostaria que meu pai entendesse naquela época que eu não ligaria de comer ovo, feijão e farinha a semana toda em troca de tê-lo mais em casa para brincar e passar mais tempo conosco. Como eu gostaria de falar para a Gravinha naquele dia que ela poderia ter faltado e ficado em casa tomando leite moça, loratadina, polaramine, vendo netflix e brincando com seu outro filho. Enfim, acho que realmente demora tempo para a gente entender que existem tempos em que algumas prioridades precisam ser estabelecidas. Ainda que seja tarde. Algumas prioridades, e vezes.
Trecho do livro: Os melhores professores que já tive! [inacabado].
Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo. matheusfernando.contato@gmail.com