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Percepções

Flávia Joss
Em 3 de janeiro iniciamos uma viagem de carro saindo do Rio de Janeiro rumo ao nordeste do país, destinos Maragogi (AL), João Pessoa (PB), Natal (RN) e no retorno Chapada Diamantina (BA). Todo planejamento já é uma viagem em si, mas o percurso acaba sendo um presente para mim, que durante as longas horas dentro do veículo, penso, crio, imagino. Consigo escrever um haicai, uma aldravia, mas as crônicas nascem e permanecem em minha mente até o momento do descanso noturno.
A primeira pernoite foi em Teixeira de Freitas, sul da Bahia, que sofreu com as fortes chuvas de dezembro. Durante o percurso pude contemplar tamanha diversidade... planaltos, vales, montes, passamos pelo Monte Pascoal, aquele que ouvimos falar na escola, quando estudamos sobre o “descobrimento” do Brasil. Tantas cidades, tanta miséria... barracos de papelão, pau-a-pique. Nas ruas o ganha pão vem das vendas do cacau, da farinha, do artesanato entalhado em madeira. Vi pontes destruídas, os rios tão cheios e os destroços do que sobraram das casas construídas em suas margens. Em alguns pontos da rodovia o asfalto cedeu, havia queda de barreiras e os caminhões, que movimentam a economia do país, arrastavam uma fila de carros. Trabalhadores com galochas e seus facões, depois de chegarem junto com o sol e comerem suas marmitas frias, se despediam das fazendas.
Na travessia entre os Estados de Alagoas e Pernambuco, a cena dos canaviais me trouxe à memória o poema O açúcar, de Ferreira Gullar, que abre uma reflexão sobre as relações trabalhistas e consumo dentro do sistema capitalista.
O açúcar
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
(GULLAR, Ferreira in Toda Poesia 19050/1980, Editora Círculo do Livro SA)
Ao retornar desta viagem trouxe na bagagem muitas imagens, significados, reflexões que atravessaram meus olhos, afetaram minha mente, meu coração e se materializam em meus escritos.
(janeiro 2022)
Flávia Joss (@flaviasjoss_) é escritora, professora de Língua Portuguesa e Literatura, especialista em Gêneros textuais e Interação. Possui cursos de aperfeiçoamento nas áreas de Arte& Espiritualidade, Escrita Criativa