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  • Foto do escritorJornal Poiésis

OS 250 ANOS DE LUDWIG VAN BEETHOVEN

Atualizado: 14 de dez. de 2020


Gerson Valle


(Bonn, 17/12/1770- Viena, 26/03/1827)


Sou de uma geração nascida logo após o infortúnio de duas perversas guerras mundiais, que contradisseram todo o humanismo desenvolvido no passado. Deveria ser inconcebível, entre pessoas bem formadas, as trincheiras da 1ª guerra tendo franceses que podiam trazer

uma bagagem cultural, artística, de sensibilidade, e alemães de formação similar, matando-se face a face, friamente. Da mesma forma inconcebível, na segunda, eram lançadas bombas sobre cidades habitadas, havendo campos de concentração com milhões de seres humanos sendo torturados, vilipendiados, assassinados das formas mais cruéis, somente por serem judeus, ciganos, com alguma deficiência física, pensarem de forma diferente dos governantes... Estas guerras e as políticas de governos autoritários impondo torturas e mortes aos adversários, sem respeito por qualquer espécie de alteridade, nem sentimento algum solidário, trouxe uma impressão generalizada de que toda atitude do passado era desprezível ou inútil. As posições morais, hipócritas. As defesas ideológicas, funestas. Que, então, o único caminho para os humanismos seria apagar todo passado, inclusive as vidas e nomes representativos de movimentos contrários aos horrores recentes, por nada ter sido eficaz para evitá-los.


No entanto, a sensação de cada geração superar a precedente, considerando-a caduca, e de as modas mudarem na tentativa de um aprimoramento, continuou sempre a iludir a espécie. E isto ainda se intensificou a partir do final do século XIX, criando uma expectativa de modernidade que supere todo passado. O antissemitismo dos nazistas foi a moda imperante entre toda a população germânica, que acabou aceitando tratar qualquer judeu como se fosse um objeto sem direitos. As modas se repetem. São só aparentes novidades, e quem se deixa levar por elas acaba idolatrando estátuas de pedra ou de ouro, sempre todas só matéria, como se fossem deuses.


Muito diferente de qualquer idolatria, contudo, é o reconhecimento de posições justas dentro da compreensão de contextos históricos determinados. Sem o estudo contextualizado da História não se pode compreender o nosso próprio período, ideias e vivências, e o que é pior, incorre-se no risco da repetição de erros e perversões como o das guerras e fascismos.


Na minha juventude, como hoje, conheci muitos “modernistas” que se esforçavam por parecer que a civilização acabara de nascer, tudo que não fosse novo deveria ser destruído (Curiosamente, o Manifesto dos Futuristas, de Marinetti, de 1909, já pregava a queima de toda arte e museu do passado! Mesmo isto chega a ser cansativo de tão repetido!). Lembro-me de um diretor de uma escola de música chegado às novidades da música composta em gravadores e/ou eletronicamente achar que os instrumentos tradicionais iriam desaparecer, e todos os repertórios teriam de ser renovados. Em 1970, quando das comemorações do bicentenário do nascimento de Beethoven, ícone por excelência da chamada “música clássica”, ele rabiscou no portal de aviso da escola o nome deste compositor, em garranchos, com a letra “e” muito repetida: “beeeeeeeeeeeethoven”, parece que acentuando a inutilidade da repetição, simbolizando talvez ser, para ele, muito repetida sua música nos concertos, ou sei lá que debilidade mental lhe passou pela cabeça. Achou, com certeza, estar traçando uma fina ironia, quando era apenas a idiotice de um ignorante!


O que o tal diretor não colocava no currículo de sua escola era o significado social, psicológico, imaterial das artes. Lá, sobre Beethoven, no máximo, poderiam expor a forma sonata clássica, regras da harmonia tradicional, e coisas técnicas que tais, fazendo ele muita força em tentar provar que tudo precisava ser renovado: não mais formas clássicas nem regras do século XVIII (Ignorando, inclusive, que estas regras ainda imperam nas canções populares com tons e ritmos e melodias repetidos).


Creio que o grande erro na formação artística acadêmica é a insistência exclusiva nas técnicas e regras, como se o mundo se resumisse a fórmulas e práticas científicas. Mais que isto é necessária a imersão na História e na vivência das formas artísticas. Como ressalta Mário de Andrade, a música não existe, nem as artes plásticas, nem a poesia, o teatro, nada disto. O que há é uma coisa só, a ARTE. E tentar penetrar numa de suas linguagens apenas, é não a compreender como um todo. E dentro de cada linguagem, sem a sentir ludicamente (com sentimento próprio e relacionamento com a vida), como faz o músico popular, necessitando alimentar-se dela como ânimo vital, a arte pode tornar-se entretenimento dispensável. O diretor que tenho por débil mental era voltado apenas à manifestação exterior da música, mais científica que artisticamente. Desconhecia, assim, a importância supradisciplinar do maior ícone da história política, social e psicológica da música. E sem essas relações não existe arte!


LUDWIG VAN BEETHOVEN, aliás, não é apenas um ícone da música. Ele o é da HUMANIDADE! Sua postura é única e representativa de uma posição humana exemplar, abrangendo pontos de reflexão e intensidade de respeito e amor à alteridade, justiça social e afirmação do indivíduo. Sua cosmovisão se inspira fortemente nos princípios irradiados pela Revolução Francesa de 1789 da igualdade, liberdade e fraternidade, junto a seu alcançado conhecimento, por esforço próprio, da Grécia antiga, de Shakespeare, do rompante do Romantismo contemporâneo a sua juventude do “Sturm und Drang” (“tempestade e ímpeto”) de seus admirados Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller. Tudo pensado e passado para um rigoroso aprimoramento das regras clássicas musicais, sua ferramenta de expressão, desde Bach e Haendel a Haydn e Mozart.


A vida lhe foi bastante adversa desde a infância. Seu avô paterno era holandês, emigrado para a Alemanha, com antepassados talvez belgas, de regiões dominadas antes pela Espanha. Seu tipo, aliás, era de um “moreno” pouco alemão, chegando a ser chamado de “espanhol” ou mesmo “mestiço” na escola (teria havido “bullying”?), de corpo atarracado mais para baixo, e feições pouco apreciadas pelas mulheres da época. Sua mãe era renana, da mesma região de que dom Pedro II trouxe camponeses pobres tentando a formação de uma colônia agrícola em sua Petrópolis. Seu pai, um músico quase sempre bêbado que, percebendo sua musicalidade desde a primeira infância, pensou disto se aproveitar, repetindo o que o pai de Mozart fizera exibindo a precocidade do filho para obter vantagem financeira. Batia-lhe por qualquer falha no estudo de piano, violino, teorias musicais. Aos 12 anos de idade, substituindo as responsabilidades do pai, para sustentar a mãe e os irmãos, toca viola em orquestra e dá aulas de piano, ao mesmo tempo em que recebe aulas de harmonia e contraponto com Chrétien Neefe, que defendia uma posição artística singular dentro do classicismo. Escreveu que “sempre considerava acima das obras técnicas e formais a ligação da arte a seu fundamento psicológico” e que a música não deve demonstrar a ciência ou simplesmente agradar aos ouvidos, mas deve se destinar a traduzir sentimentos. A obra de Beethoven mostra ter seguido tais princípios, como tento aqui demonstrar, e já bem adiante na vida, ele escreve em carta a este seu ex-professor: “Se eu me tornar alguma coisa na minha arte, será devido sobretudo ao senhor.” Coerente com isto, seu aluno Ries contou, anos depois da morte do mestre, que ele não se importava se o aluno errava uma nota, dizendo ser um acidente desprezível, mas ficava furioso se omitia um crescendo, de marcar uma expressão, ou alterasse o caráter da peça, pois essas coisas denotam uma “falta de sentimento”.


Um professor do colégio lhe introduz a ideias revolucionárias francesas antes mesmo da grande revolução, e por si mesmo procura ler a melhor literatura e conhecimento de História e de línguas. Sua compensação lúdica lhe sai por improvisações ao piano, que faz com que insistam que tem de se apresentar em Viena. Vai lá aos 17 anos e conta- se que Mozart se impressionou com seus improvisos. Mas, por motivo da doença da mãe tem de retornar a Bonn, só indo em definitivo para Viena aos 22 anos, seguindo aí aulas com o grande Josef Haydn (o autor de mais de 100 sinfonias, forma que praticamente “moldou”) e o italiano muito benquisto então Antonio Salieri (que a peça teatral de Peter Shaffer e o filme de Milos Forman “Amadeus” taxaram como inimigo de Mozart).


Com toda a genialidade e importância artística de Haydn (1732-1809), ele foi grande parte da vida um criado (como eram tratados os músicos) no palácio do príncipe Steházy. Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e seu pai Leopold Mozart foram empregados do arcebispo Colloredo, que governava Salzburg, tendo de vestir libré e de pedir autorização para todos seus passos. Com muito esforço Mozart conseguiu sair de Salzburg para Viena aos 24 anos, tornando-se seu próprio empresário, tendo de contratar teatros e orquestras para suas apresentações e não parar de compor sob encomendas, para o sustento da mulher e dos filhos, adoecendo e morrendo esgotado aos 35 anos. E por estes dois expoentes, pode-se compreender as dificuldades que passavam os artistas da época.


Beethoven orgulhava-se de sua independência. Não desejava, como era comum, que suas peças servissem de distração para a nobreza, mas que refletissem suas posições, o caráter lutador contra as adversidades, de afirmação espiritual e de alegria interior. Suas atitudes não tinham precedente na classe artística. Convidado a tocar piano em palácios de nobres, se alguém falasse enquanto tocava, levantava-se e ia embora sem se despedir. Uma vez numa estação de águas encontra seu amado poeta Goethe, e, estando caminhando com ele, aparece a família imperial dos Habsburgos. Goethe se inclina e tenta uma conversa educada. Beethoven põe as mãos para trás e segue em frente. Num de seus rompantes contra um nobre justifica-se num bilhete: “príncipes e nobres sempre houve e haverá muitos. Beethoven só há um!”


Admirava, de início, o general Napoleão Bonaparte que levava com seu exército os ideais revolucionários republicanos franceses para outros países. Dedica-lhe sua terceira sinfonia, na qual entra em sua segunda fase, enveredando pelo Romantismo na Música. Estava por enviar a Napoleão a partitura quando lhe chega a notícia de que o herói havia se tornado imperador. Traiu os ideais republicanos, aceitando o retorno de um regime de privilégios! Rabisca com fúria a dedicatória, chegando a rasgar o papel, e escreve encima: “A um ex-herói”.


Pela mesma época desta chamada “Sinfonia Heroica” passava por sua mais dura prova. Desde os 26 anos sua audição gradualmente diminuía. Consultou muitos médicos, mas tudo inútil. Escreve um testamento pensando suicidar-se. Mas sua vontade férrea de vida era mais forte. Resolve “dominar” seu destino. Sua genialidade era tamanha que o aprendizado musical o fez armazenar todos os sons dos instrumentos na cabeça, podendo combiná-los no seu “ouvido interior”. A surdez piorou por toda a vida. Em sua 3ª e última fase criadora (quando escreveu a Nona Sinfonia) não ouvia mais nada, e assim escrevia a música que lhe vinha de dentro, inclusive com sequências e polifonias inusitadas como a grande fuga para quarteto de cordas op.133. O revolucionário compositor do século XX Igor Stravinski chegou a declarar não conhecer nada tão moderno quanto esta fuga! Na verdade, não é moderno nem antigo. É ele, Beethoven, acima dos tempos com sua construção voltada a narrativas só dele, e que atinge todos por ser essencial, tal como mitos e lendas de que emanam significados eternos. Não é na análise da forma contrapontística desta fuga que a expressão beethoveniana mais se diferencia. Ele era um mestre na composição de fuga, e na 3ª fase encontram-se exemplos notáveis como nas sonatas para piano opus 106 e 110, ou nos finais do Glória e do Credo da Missa Solene. A modernidade vista por Stravinski talvez esteja mais nos fraseados bruscos, suas explosões e tenacidade. Como se, agradável ou não, haja necessidade de certos procedimentos. Num de seus últimosm quartetos, coloca como epígrafe, a pergunta com a resposta: “É preciso? É preciso!” (“Muss es sein? Es muss sein!”). Quem segue a arte como moda e motivo de exibição das vaidades temporárias está muito longe de compreendê-lo. Ele produziu a arte necessária!


É comum dizer-se ser Beethoven um cérebro. Suas composições exigiam-lhe uma construção como resultado de muita reflexão, suas partituras muito rabiscadas, reescritas. Às vezes até um tema lhe vindo nas caminhadas solitárias aos arredores de Viena iam em seus cadernos se modificando e tomando sentidos diversos. A composição era-lhe uma luta sofrida, buscando expressar sempre com mais perfeição. O que? Suas sonatas, trios, quartetos, concertos, parecem narrar-nos muita coisa, mas é a forma trabalhada que conta por si. É fácil reconhecer o estilo de Beethoven. E todos temos a impressão que as quatro notinhas insistentemente repetidas por toda 5ª sinfonia – que até popularmente é referida como tcham tcham tcham tcham – é a obstinada perquirição que se acaba conquistando. É ele. É Beethoven.


O cérebro, no entanto, é acompanhado por imenso coração. Um cara feioso sempre apaixonado por mulheres que não lhe estavam à altura da genialidade, que porém não o consideravam também à altura de suas graciosidades, nível social, vida regrada (Mudava muito de residência, era meio sujo, suas casas estavam sempre desarrumadas, comia quando seu cérebro e composições concediam-lhe uma pausa, quando até podia exagerar um pouco no vinho, não ligava para o mundo material, etc.) A sua “carta à amada imortal”, sem data, e que ninguém sabe quem foi, é uma obra literária de um vivo romantismo. A admiração e respeito à mulher, nem sempre encontrável nas figuras do passado, mostra também sua sensibilidade e altruísmo. Escolheu o assunto de sua única ópera, “Fidélio”, para exaltar as qualidades femininas, simbolizadas na personagem Leonora, que se traveste de homem para trabalhar no presídio em que seu marido está preso por motivo político. E com a sua vitória contra a tirania, há o triúnfo da liberdade (um coro chega a louvar um momento de encontro com o ar puro no pátio do presídio). Reescreveu algumas vezes, por anos, esta ópera, não pelo sucesso como costumam fazer muitos compositores, mas para que pudesse atingir a sensibilidade e a reflexão do público.


Este o cunho de sua obra. Dizia desejar espalhar a alegria pela dor que sofria. Sacrificava-se pela transmissão de uma mensagem mais alta ao mundo. Parafraseando-o: “Músicos, artistas de diversas linguagens, sempre houve e haverá muitos. Beethoven só há um”. Não é suficiente o que dele se divulga. Há sempre novas gerações que devem lhe conhecer melhor. E se propagado em todo seu significado talvez possa expandir um sentido mais humano, social, altruísta, diminuindo os retrocessos guerreiros e autoritários de nossa civilização.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


A bibliografia de Ludwig van Beethoven é extensíssima. Faço aqui menção apenas a alguns volumes que li e compõem minha biblioteca particular:


BOUCOURECHLIEV, André – “Beethoven”, Solfèges/Seuil, France, 1963


BRANCO, Luís de Freitas – “A personalidade de Beethoven (Estudos beethovenianos)”, Cosmos, Lisboa, 1947


BRUERS, Antonio – “Beethoven – Catalogo ragionato dele principale opere”, Dott. G. Bardi, Roma, 1937


COOPER, Barry – “Beethoven, um compêndio”, trad. Mauro Gama e Claudia Martinelli Gama, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1996


DE LA GUARDIA, Ernesto – “Las sinfonias de Beethoven, su Historia y Analisis”, Ricordi Americana, Buenos Aires, 1948


DE LA GUARDIA, Ernesto – “Las sonatas de Beethoven”, Ricordi Americana, Buenos Aires, 1967


DE LA GUARDIA, Ernesto – “Los cuartetos de Beethoven”, Ricordi Americana, Buenos Aires, 1952 JOSETTI, Rodolpho – “Beethoven e suas sinfonias (Interpretação de Rodolpho Josetti)”, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1945


FISKE, Roger – “Beethoven – Concertos e aberturas”, tr. Vivian Wyler, supervisão de Luiz Paulo Horta, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1983


JOSETTI, Rodolpho – “Beethoven e suas sinfonias (Interpretação de Rodolpho Josetti)”, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1945


LUDWIG, Emil – “Beethoven”, tradução de Vinícius de Moraes, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1960 (2ª edição) 8 OLIVEIRA, Willy Corrêa – “Beethoven, proprietário de um cérebro”, Editora Perspectiva, São Paulo, 1979


OLIVEIRA, Willy Corrêa – “Beethoven, proprietário de um cérebro”, Editora Perspectiva, São Paulo, 1979


ROLLAND, Romain – “Beethoven – las grandes épocas creadoras”, em 5 volumes: 1 – “De la Heroica a la Appasionata”; 2 – “Goethe y Beethoven”; 3 – “El canto de la ressurreción – La Missa Solemne y las últimas sonatas)”; 4 – “La catedral interrompida – La novena sinfonia – Los últimos cuartetos)”; 5 – “La catedral interrompida – Finita comoedia – Las amadas de Beethoven”, Livraria Hachette S. A., Argentina, 1958;


ROLLAND, Romain – “Vida de Beethoven”, Tradução de José Lemos, Atena Editora, São Paulo, 1957 SPECHT, Ricardo – “La vida tormentosa y romântica de Beethoven”, versión castellana de C. di Vruno, ediciones Suma, Buenos Aires, 1943


SPECHT, Ricardo – “La vida tormentosa y romântica de Beethoven”, versión castellana de C. di Vruno, ediciones Suma, Buenos Aires, 1943


WAGNER, Richard – “Beethoven”, tradução de Theodomiro Tostes, L&PM, Porto Alegre, 1987


WYZEWA, Teodor de – “Beethoven et Wagner (Essais d’histoire et de critique musicales)”, Perrin, Paris, 1913

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