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Oração dos velhos



Sylvio Adalberto


Bem aventurados os velhos de corações limpos e safenados, serão a alegria da farmacopeia nacional. Além da tigela de leite, gostaríamos de receber uma cota diária de ternura e que de vez em quando alguém se lembrasse de que, se hoje temos os olhos baços, foi de tanto tentar enxergar o futuro. Se temos as costas encurvadas, não é só pelo peso dos anos, é mais pelo esforço diário de ter carregado o futuro até aqui.


Ó Senhor, se não temos mais dentes foi de tanto que roemos o pão duro e amargo que Tua infinita misericórdia nos legou. Se hoje nossas carnes estão flácidas e nossos músculos já não nos obedecem é simplesmente por que foram gastos no doce e inútil sacrifício de fazer o mundo funcionar. Se nossos passos são trôpegos e nossas pernas mal suportam o corpo, foi de tanto que as maltratamos na tentativa de abrir muitos dos caminhos que hoje são trilhados pelos mais jovens.

Pai da misericórdia infinita, o pior é saber que dói! Ossos e músculos. Mas a dor maior é carregar os destroços de uma vida que já foi útil a tantos e hoje não recebe uma migalha por reconhecimento. Como dói, Senhor, saber que depois de ter dedicado toda uma vida pensando nos outros, hoje não conseguimos encontrar sequer um desses "outros". Foi duro ter navegado tanto com as próprias velas, para no fim da jornada, ser obrigado a atracar no porto de um abrigo para velhos e indigentes escombros, entre tantos sombrios e amargurados rostos e com surpresa descobrir que é possível partilhar a solidão com a dor da solidão alheia. Como dói redescobrir-se nas rugas e nos olhos sem cor daqueles outros que receberam o mesmo quinhão que nós. É o mesmo que fazer de ré o caminho que já foi arduamente percorrido.


Ó Pai da misericórdia incontestável, perdoa nossas orações balbuciadas e nossas trêmulas mãos postas. Que culpa temos que a vida nos seja a mais pesada e incômoda das cruzes que levamos. Dá-nos força, Senhor, para suportar tantos olhares de descaso. Agradecemos Senhor, os pulcros e minguados raios de sol, recebidos com infinita alegria, através das frestas do quarto dos fundos.


Obrigado, Senhor, pela dureza das camas dos hospitais, pelo doce olhar das enfermeiras, pelo esquecimento de nossos filhos queridos, pela intolerância dos parentes e amigos e pelo bendito silêncio que nos circunda. Obrigado Senhor, por ainda termos o coração aquecido, por nossa insuspeita capacidade para o amor e principalmente pela maravilhosa vocação para perdoar.


Sylvio Adalberto é poeta e escritor, membro da Academia Petropolitana de Letras.

https://www.facebook.com/sylvio.adalberto

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