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  • Foto do escritorJornal Poiésis

Olhar de cima

Atualizado: 29 de mar. de 2021


Matheus Fernando

Descobri uma possível solução para um problema que eu já percebia em mim há um tempo. Problema não, um detalhe, uma visão. Solução não por não ser um problema, mas um olhar específico, uma visão diferente, de outro lugar, de fora do observador, de mim no caso. Mas vamos à questão e a questão está presente na fala “ver de cima.”

Pois é, ver de cima. Por vezes e inúmeras vezes eu usei e ainda uso essa expressão. Até que um dia na análise ela, a psicanalista, me perguntou… “O que seria esse ver de cima?” Fiquei em silêncio por uns 5 segundos.


“Uai, ver de cima é ver de cima!” Respondi com a firmeza do senhor do tempo. E fui com aquela indagação para casa. “Ver de cima, ora bolas. Não é possível que ela nunca viu nada de cima. É óbvio que as pessoas vêm de cima. Não é possível que só eu consiga olhar as coisas de cima.”

Até que aos poucos eu mesmo fui entendendo melhor o que seria esse ver de cima. Trata-se de uma visão mais ampla, mais deslocada de mim. Como nem para mim isso não era muito claro, fui para a prática…

Percebi que havia situações em que eu literalmente conseguia ver de cima. Trata-se de um olhar, de um lugar, que não é o meu lugar. Trata-se de quase como uma visão fora de mim. Não estou falando de um olhar empático. Falo de um olhar que prescinde completamente de tudo ou quase tudo que constitui o observador. E aqui chegamos a um primeiro problema nessa equação. Seria possível eu ou você, nós conseguirmos olhar para alguma situação completamente apartados do que somos, da nossa percepção, nos lugares pelos quais passamos e pelas nossas experiências de vida?

Digamos que seria quase impossível. Concordo. Mas por vezes eu tenho essa sensação de esvaziamento. É claro que nesse processo de pelo menos tentar a psicologia corre por mim como eletricidade em fio desencapado. As lógicas de funcionamento saltam na mesma hora. Não sei como, mas por vezes eu consigo me apartar da concepção de Deus, sem muita dificuldade - não me colocar no lugar de um observador que não eu, até porque isso seria impossível - eu consigo colocar em perspectiva o que veem meus olhos, alguns pré conceitos ou conceitos prévios parecessem que esfarelam-se e é como se eu subisse e conseguisse olhar a experiência de cima. De outros lugares, de outros olhares. Acho que por isso nunca foi difícil para mim ponderar, abafar uma briga, trazer reflexões em um ambiente de caos. Se todos conseguissem considerar outros olhares que não o próprio sobre a mesma situação… Acho que isso é ver de cima.

Talvez seja por isso que não tenho tanta dificuldade de escrever. Fico me perguntando como que Fernando Pessoa conseguirá criar história, contexto histórico, personalidade, temperamento, até horóscopo para heterônimos como o de Alberto Caeiro - se não olhando de cima. Como criar vida a algo que fosse completamente e indistinto da sua própria personalidade. Pode até parecer que não, mas olhar de cima é bem difícil por vezes. Por vezes as pessoas morrem sem conseguir considerar que existem outras formas de olhar e lidar com o mesmo mundo, com a mesma situação. Sabe? Se deslocar da sua forma de ver a vida. Por vezes olhamos para a realidade como se ela fosse dada, como se ela já fosse pré estabelecida somente da forma que a concebemos. Não, não! Antes de atribuirmos quaisquer significados, antes a realidade é. E é o que? Também não sei, isso para não dizer nada. Mas de uma coisa eu sei, que toda descrição de um fato fala mais do observador do que do fato em si.

E sobre a solução que encontrei e falei no início do texto? Já esqueci a essa altura do campeonato… ou talvez não tenha encontrado ainda. Pretendo ficar com essa reflexão por mais alguns dias. Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo.

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