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  • Foto do escritorJornal Poiésis

O Subúrbio sentimental de João Nogueira




Leonardo Soares*

A música “Espelho” do grande João Nogueira é um verdadeiro poema cantado.

Nessa canção, o folião do Méier, portelense apaixonado (muito embora, por questões de briga política, fundasse em 1984 a escola de samba Tradição), funcionário da Caixa Econômica Federal, poeta e devoto da Santíssima Trindade do samba carioca (Noel Rosa, Geraldo Pereira e Wilson Batista) nos conta a história da sua juventude. História que transcorre quase toda ela nos subúrbios do Rio, nos subúrbios do grande Méier, uma região que de tão grande se esparramava por Quintino e Piedade e chegava a Madureira e Oswaldo Cruz por conta das linhas de trem da Central. Em suma, a terra santa do Samba, onde brotavam compositores e artistas do samba, o “subúrbio nos melhores dias”.

Embora a narrativa de “Espelho” seja mais amena e lúdica do que vimos em “Faroeste Cabloco” e “One in a million”, paradoxalmente, João parte de um fato traumático ocorrido nessa própria infância: a perda do pai, o também músico violonista João Batista Nogueira, que faleceu (1951) quando o filho tinha incompletos 10 anos:

“Num dia de tristeza me faltou o velho E falta lhe confesso que ainda hoje faz”

E é essa perda profundamente dolorosa que norteará o sentido que João busca imprimir no resgate da “sua própria história”.

Estão ali não apenas a dor da perda, mas o orgulho de ter nascido no subúrbio, as brincadeiras típicas de uma criança de classe média urbana baixa (João era filho de um advogado) dessa região, as ambições também muito comuns de um jovem formado num ambiente situado no auge do varguismo (jogador de futebol quando criança, e um jovem responsável e trabalhador quando adulto, “sustentando tudo”, e no meio disso, servir à Pátria: “Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço/ Com as fardas mais bonitas desse meu país”), os espaços de sociabilidade tão marcantes de um subúrbio e que se expandem nos anos 40 e 50 com Vargas no poder (rua, escola, esquina, jogos de futebol).

Mas é significativo que João tenha lançado “Espelho” em 1977, numa conjuntura bem distinta da que ele narra na música. O presente do qual parte João para recordar os anos quase idílicos da sua juventude de três décadas atrás (“Eh, vida boa/ Quanto tempo faz/ Que felicidade!”), é bem mais árido.

Os subúrbios da fase final da Ditadura eram mais violentos, empobrecidos, aviltados e precarizados.

Nesse sentido, a saudade de João não é apenas do João Pai. É desse subúrbio que parece se perder com o tempo, numa morte lenta. Numa morte muito pior que a do pai.

“Mas tão habituado com o adverso Eu temo se um dia me machuca o verso E o meu medo maior é o espelho se quebrar” Leonardo Soares é Professor de História/UFF – Campos

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