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  • Foto do escritorJornal Poiésis

O Quadro (ou A mulher que passa)




Charles Soares*


O apartamento era pequeno, mesmo para os novos padrões ditados pelo capitalismo, que resolveu converter não só o tempo, mas também o espaço em dinheiro. Ainda assim, era aconchegante. Claro e sóbrio. Na sala, apenas um pequeno sofá e uma mesinha de vidro, entre ele e a tv na parede. Era a parte da casa que eu mais frequentava. Ali eu assistia a meus filmes, trabalhava, lia e ouvia música. Não raramente, até dormia. Esse pequeno espaço ficava à direita da porta de entrada. À esquerda, uma pequena janela. À frente, a parede que me recebia logo ao abrir a porta. Vazia, vestida de um azul que lembrava o céu de inverno, fora preparada para receber um quadro, desde a última arrumação. O fixador na parede, a iluminação, tudo pronto. Cheguei a pendurá-lo umas duas vezes, dei uns passos até a porta. Analisei-o um pouco, não me convenci de que aquele era o quadro ideal para a entrada da sala, parecia um adeus, uma recepção às avessas. Tornei a retirá-lo, envolvê-lo no papel de seda e retornar com ele ao armário. Nunca tive coragem de deixa-lo ali.


Era uma sexta-feira daquelas pesadas que empurramos com as últimas forças para que ela feche a semana. Saí de casa já um pouco atrasada, talvez, inconscientemente isso ajudasse o dia a passar. Andava a passos firmes pelas ruas do centro. Cada passo uma contagem regressiva a vencer as três quadras que se esticavam entre minha casa e o prédio em que trabalhava. Os cabelos, ainda úmidos a me roçar os ombros, ajudavam o balanço do vestido a manter a sensação do banho, tarefa difícil nesse início de manhã em que o sol já havia devorado todo resquício de frescor que a noite tivesse deixado pra trás.


Apesar de já haver um número considerável de pessoas apressadas a se cruzarem na calçada arrastando os seus sonhos e suas angústias, tive uma estranha sensação de estar sendo seguida. Uns passos marcantes que ora se apressavam, ora quase paravam, como a obedecer ao ritmo dos meus.


Virei a cabeça disfarçadamente, o suficiente apenas para enquadrar em meu campo de visão o agente daqueles passos. Vislumbrei a figura de um homem. Ainda que estivesse atrasada, me detive em frente a uma dessas bancas de rua para olhar umas revistas... apenas pretexto. Como eu já esperava, ele também parou ao meu lado. Pude sentir seu perfume amadeirado e observá-lo bem, já que ele não olhou para mim um instante. Bem vestido em traje social, cabelos grisalhos sem corte definido, barba por fazer, o que lhe dava um ar de moleque, destoando dos seus presumíveis quarenta anos.


O prédio em que eu trabalhava ficava na esquina em frente, a uns cinquenta metros, bastava cruzar o quarteirão. No entanto, segui o caminho mais longo. Entrei na primeira rua à esquerda que contornava toda a quadra e tornava o percurso duas a três vezes maior. Não fiz isso por medo de estar sendo seguida, queria apenas confirmar aquela situação que me causava uma espécie de prazer contido. Resolvi prolongar aquela “brincadeira”. E assim se deu. Mal comecei a andar o desconhecido perdeu todo o interesse pelas revistas. Não precisava olhar para trás para sentir sua presença a poucos metros de mim. Era uma presença que não me ameaçava, mas também não era algo confortável. Era um incômodo indefinido que eu prolongara arbitrariamente. Ocorriam-me à mente casos de tarados, psicopatas, criminosos diversos, lendas urbanas, mas minha mente se negava a enquadrá-lo em qualquer desses casos. Perdi a pressa, perdi a hora do trabalho, o estigma da sexta-feira se diluíra na uniformidade dos dias e o sol cada vez mais quente já fazia deslizar gotículas de suor sob o meu vestido.


Num ato apressado, como se meu inconsciente tivesse decidido sem me avisar, virei-me bruscamente para trás... Assim como eu, ele também não esperava por isso. Não conseguiu parar tão rápido e ficou a menos de um metro, de frente para mim, sem falar nada e sem ação. Pude ver melhor o seu semblante, seus olhos claros indefinidos e um sorriso escondido por trás daquele rosto assustado. Antes que eu perdesse o controle da situação, fui logo acusando. Você está me seguindo! O que você quer comigo? O sorriso que até então estivera escondido se mostrou. Ele percorreu todo o meu corpo com aquele olhar iluminado, voltou a me olhar nos olhos... Eu sou um artista! Porque está me seguindo, perguntei novamente em tom mais alto e dando um passo para trás. Vai dizer que é poeta? Um desses poetas de porta de bar que encontrou sua musa inspiradora? Quer que eu acredite nessa conversa? Pois fique sabendo que... só então me dei conta de que falava sem parar enquanto ele estava alheio às minhas palavras, apenas me observava. Não. Não sou poeta sou pintor, artista plástico, pinto quadros. Vou pintar você. Que atrevimento! Quem disse que eu quero posar para você? Nãoprecisa, eu só estava te seguindo porque me encantei com você, e vou pintá-la quando chegar em casa. Quando você chegar em casa nem vai lembrar de meu rosto, desdenhei. Eu não preciso de seu rosto, eu preciso de sua energia, por isso a seguia de perto, mas agora que você está aqui falando comigo, melhor ainda. Obrigado!


Olhei o relógio. Quase onze horas. Saí rapidamente atravessando a rua e da portaria de meu prédio ainda pude vê-lo parado a me observar. Durante muito tempo fiquei recriando a imagem daquele homem. Seu rosto harmônico, sua postura segura, e aquele olhar que invadia meu ser. Já fui abordada por homens várias vezes, de formas variadas e criativas, mas dessa vez realmente fiquei surpreendentemente confusa. Nunca gostei de ir a recital, teatro ou exposição acompanhada. É como se dividisse com alguém toda aquela intimidade que a arte nos proporciona. Gosto de trocar opiniões, ouvir comentários, debater..., mas depois. No primeiro momento, entre o flerte e o encontro, gosto de estar só, egoisticamente me deleitando. Assim foi nesta tarde. Havia uma exposição de um artista contemporâneo no centro cultural. O salão estava com pouca gente e pude me deter demoradamente olhando cada obra. Era o tipo de pintura que eu gostava. Poucas cores e muitos movimentos. No final do corredor, senti um calafrio a percorrer meu corpo e fiquei estática, como aquela sensação que se tem ao encontrar de surpresa o objeto da paixão quando se está apaixonada. Era um quadro de tamanho médio, em posição vertical. Olhei o título. “A mulher que passa.” Era uma mulher de costas. Era eu. O vestido verde, o movimento dos quadris, o pé levemente tocando a calçada de pedras portuguesas como a engendrar um novo passo. “não preciso de seu rosto, só quero sua energia”. O vestido, os cabelos levemente úmidos caídos nos ombros, a calçada de Pedras. Impossível afirmar quem era aquela mulher, mas intimamente eu me reconheci.


Quero comprar aquele quadro. A mocinha se virou. Pareceu assustada com meu tom de voz. Fiz o cheque, um valor considerável. A senhora conhece o pintor? Não. Apenas gostei do quadro. Ele chega daqui a pouco, não quer esperar? Outra hora. Estou com pressa.


*Charles Soares é formado em Letras e Comunicação, membro do conselho editorial do Jornal Poiésis.

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