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O PASSAR DO VENTO
Atualizado: 12 de jul. de 2021

Braz Chediak Cinco horas. Acordo, olho o termômetro do celular e vejo que faz 8º C.
Lá fora o vento passa gelado, zunindo. No entanto, minha cama esta quente, o quarto está quente e permaneço deitado por mais algum tempo, me recordando da infância, quando, com meu irmão mais velho, vendíamos pastéis nas janelas dos trens.
Às vezes me divertia, com o vapor saindo da boca, fingindo que estava fumando (naquela época era chique os homens fumarem), às vezes me paralisava, tremendo com a ventania que cortava a pele.
Meu pai, com seu uniforme caqui, dava a licença para o trem partir. A locomotiva apitava, um apito curto, e partia. Meu irmão entrava em casa e eu ficava na plataforma, até que o trem sumisse na curva, sonhando com outro mundo, com outra vida, até que minha mãe gritava: “Braz, vem prestar conta do que você vendeu!”. “Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,/mas atravessa a noite,/ a madrugada, o dia,/atravessou minha vida,/virou só sentimento” escreveu Adélia Prado.
E é sentimento que me aparece agora, pensando nas partidas e chegadas, fazendo ligações entre o que significava os trens, pois, filho de ferroviário, morando em estações sem luz, era no passar dos trens que comecei a entender a vida, entender que depois da curiosidade, de ver rapidamente homens bem barbeados, mulheres enfeitadas com batom... tudo acabava: restava o Rio Verde passando em frente à casa, minha mãe na cozinha, meu pai no telégrafo... e o sonho, a certeza, de que havia um mundo melhor, longe de nós. Um dia parti, com medo de uma vida vazia, mas levei comigo a ternura das pequenas coisas: minha mãe na beira do fogão, meus irmãos brigando para ser o primeiro no banho - tínhamos apenas uma bacia e a primeira água era a mais quente -, minhas irmãs aprendendo a fazer rabanadas ou sopa de fubá, meu pai colocando panos enrolado sob as portas para que o vento não entrasse... Tudo isto são recordações. Tudo isto é parte de minha vida. E agora, neste amanhecer frio, me pergunto: valeu a pena?
E, sob a coberta quentinha, pensando em tudo o que senti, que vi, que ouvi... escuto Fernando Pessoa, murmurando baixinho: “Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”.
Braz Chediak (Três Corações-MG, 1942) é escritor, cineasta e roteirista. No cinema, dirigiu “A navalha na carne”, “Bonitinha mas ordinária”, “Perdoa-me por me traíres”, entre outros.