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O homem sem palavras

Flávia Joss
Meu pai é um homem sem palavras. Não se espante, ele não é um homem sem caráter, apenas apresenta uma dificuldade enorme em se comunicar. Durante minha adolescência foi que percebi esse detalhe. Na infância tudo é colorido e doce... descobri cedo que trazer balas e toda sorte de guloseimas era uma forma de demonstração de carinho que posteriormente foi muito repetida com a chegada dos netos.
A escassez de palavras fez dele um homem calado e eu sou adepta das palavras ditas, o afastamento foi quase inevitável. Sei que ele não teve uma vida fácil, uma coleção de frustrações o acompanhou e sei que cada pessoa lida com os percalços de maneiras diferente. E assim, já entrando na idade adulta, fui tentando entender aquele homem que apesar de estar perto, parecia estar sempre distante.
No meu primeiro aniversário de casamento ele me deu uma carta. Todas as palavras que ele estancou estavam despejadas ali, foi a maior demonstração de amor que ele me fez. Disse tantas coisas lindas, coisas que ele poderia ter dito ao longo da vida, mas de uma maneira peculiar resolveu guardar e abrir a represa de uma única vez. Lembro-me de ler e reler a carta com os olhos banhados em lágrimas. Anos depois, ele se mudou, foi morar em outro Estado com a minha irmã e em dezembro de 2015, veio passar o Natal comigo. Levei-o ao teatro para assistir ao espetáculo que havia montado com meus alunos, ele desconhecia minhas habilidades artísticas. Ficou impactado, disse que achou lindo e finalizou com a frase “Você brilha.” No início deste ano o presenteei com meu livro, ele ficou folheando, leu meu nome na capa várias vezes e olhava para mim com os olhos brilhando e um sorriso no rosto. Disse para a minha irmã que eu sou inteligente. Demorei para entender que cada pessoa tem a sua forma de amar.
Ele sente. Não tem a capacidade e não foi ensinado a se expressar oralmente... fico me perguntando o tamanho do sofrimento de alguém que não fala, quantas incompreensões, quantas perdas, um peito cheio que não extravasa... Meu pai está velho e debilitado, continua calado, contudo, eu mudei. A vida segue metamorfa.
(agosto de 2021.)
Flávia Joss (@flaviasjoss_) é escritora, professora de Língua Portuguesa e Literatura, especialista em Gêneros textuais e Interação. Possui cursos de aperfeiçoamento nas áreas de Arte& Espiritualidade, Escrita Criativa