Jornal Poiésis
O estado e o povo

Gerson Valle*
A definição poético-filosófica do Estado, feita por Nietszche, como sendo “o mais frio dos monstros frios”, é, para mim, que fui durante anos professor de Direito Internacional Público (cujos principais sujeitos são o estado, as organizações internacionais e o ser humano) a mais realista. Classicamente o estado é definido como “a nação politicamente organizada”, exigindo-se dele os elementos “povo, território e governo”. Mas, de definições clássicas estamos fartos, pois não? Uma definição sempre reverte a outras. O que é, dentro desta definição, a NAÇÃO?
Fala-se de atributos culturais como língua, costumes, etc. Mas, o Estado é composto por uma NAÇÃO neste sentido cultural? Normalmente, ao contrário, é um composto das assim definidas nações, onde alguma(s) predomina(m) sobre outras, inclusive linguisticamente (e são fáceis os exemplos de Espanha, França, Itália...), o que acaba ocorrendo em plano internacional entre os estados, quando se fala em globalização, pois todos sabemos que o domínio econômico elege certas culturas (de nações) para criar uma hegemonia artificial, que é de domínio do mais forte mesmo! Como completa Nietszche seu raciocínio, o Estado mente tanto que chega a se autodenominar “povo”. Na verdade os conceitos de “estado” se foram formando a partir do momento histórico da passagem da Idade Média para a Moderna. Não como fenômeno natural (como é o povo ou a cultura), mas por um artificialismo teórico para justificar os governos sobre os povos. Estado, na verdade, é uma “ficção jurídica”, e não uma realidade natural. Na época do Renascimento, tanto a concepção de “estado” como a de “política” como ciência (e aí sobretudo pelos trabalhos de Maquiavel) se foram consolidando. A de política, como sendo o estudo do poder, sua conquista e manutenção. Se pensarmos na relação humana e social de qualquer povo, o interesse deveria estar voltado para a equidade, direitos naturais, justiça social, e não no predomínio de classes e/ou indivíduos e organizações que sustentam o poder (seja econômico como político). Quem já leu Maquiavel sabe que ele trata da manutenção do “príncipe” em seu poder, independentemente do interesse do povo. E isto há seis séculos vem sendo considerado “ciência política”. O que se agravou negativamente cada vez mais (se encararmos os verdadeiros interesses do povo) foi que esse “príncipe” se amolda à vontade dos donos da economia, seus mantenedores, que formam um “sistema financeiro internacional”, na defesa da riqueza ser sempre aumentada para os mesmos, normalmente sugando os recursos decorrentes do trabalho das massas, eles mesmos, financeiramente, fazendo dinheiro de dinheiro, de ações, papeis, cobranças de juros (como os bancos), improdutivamente.
Com a presunção do caráter científico da política ser encarada como a manutenção do poder, da economia ser vista como a forma indiscutível de se aumentar o desenvolvimento dos povos (a despeito desse desenvolvimento ser voltado para o próprio estado e não para o ser humano, que em princípio deveria ser seu beneficente), a transmissão de seus conhecimentos (de política e de economia) passou a enfocar o realismo na sobrevida dos estados modernos, o que pode ser classificado, desde o primeiro ministro austríaco Metternich (primeira metade do século XIX) como REALPOLITIK. Ou seja, nas universidades passaram-se a ensinar as formas como esta distorção ficcional deve continuar a existir, mesmo que prejudicando toda a população, porque isto é “politicamente” ou “economicamente” real, e assim, CIENTÍFICO!!!
Não é, portanto, de se estranhar quando um governo de um despreparado qualquer coloque como suas metas de realizações uma reforma da previdência para que este setor não acarrete prejuízo na estrutura do estado. Morram os pobres e os velhinhos para que a abstração, a ficção monstruosa do estado sobreviva! Sofram os trabalhadores, os pobres, os desvalidos, pois o governo que se move numa modernidade de ficção científica quer produzir suas armas de extermínio! Ou que o mesmo débil mental, num momento de disseminação de uma epidemia, venha exaltar a necessidade da “economia” ter primazia sobre as pessoas, quando devia servir para a saúde física e mental destas. O governo, numa visão mais humana da existência, não deveria manter-se pelo poder, mas sim para servir as necessidades básicas do povo. Mas, o liberalismo, agravado pelo neoliberalismo do século XX, volta-se para o que julga cientificamente real, como toda ciência pede a comprovação real de um fenômeno para considerá-lo, esquecendo-se que mais do que ciência de laboratório, a vida humana pulsa por amor, arte, preenchimento das necessidades básicas de saúde, moradia, transporte, alimentação. E se há um governo é para suprir tais necessidade para todos!
*Gerson Valle é escritor, membro da Academia Brasileira de Poesia, ocupando atualmente o cargo de presidente da Academia Petropolitana de Letras.