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O Conto do Esquecimento

Atualizado: 17 de abr. de 2022



Rosangela Ataíde


Acordei, sem saber que estava acordando para um pesadelo... Logo alcancei as pantufas que Amália havia deixado cuidadosamente aos pés da cama. Notei que só calçava um pé de meia. Não me esforcei em procurar entre os lençóis a meia faltante. Sobressaltado pensava já ter amanhecido, mas ainda era madrugada escura, busquei o relógio no criado mudo e constatei que eram apenas 4 da manhã. Beijei emotivo a foto de minha amada e saudosa Cláudia. Não orei, há muito perdera o costume. Certamente perdera também a fé.


Enfim o dia começara para mim, não dormiria mais. Já no banheiro preparei meu banho, meu barbear. Como sempre fizera durante toda minha vida adulta.


Amália costumava chegar pontualmente às 8 da manhã. Haveria tempo então para o café e minha leitura matinal. O jornal já devia estar na portaria a minha espera. E digo a minha espera pois era o mundo que me restara além de Amália e seus cuidados.


Amália é aquilo que chamamos de acompanhante, mas é uma mulher indecifrável aos meus olhos embora a examine cuidadosamente, não como um médico, sim como um estranho que capta a veracidade nos olhos alheios e desnuda ou tenta desnudar a persona ali oculta.


Amália além de me acompanhar fazia todo o trabalho doméstico do apartamento em que vivo, mas não sei se ela cuida de mim por zelo de cuidar, ou por obrigação para se sustentar. Mulher pontual, nunca se atrasara, chegava às oito, junto com o badalar dos sinos, me ajuda já faz um bom tempo, não me recordo a quantos anos ela está comigo... Quantos anos? Talvez seja apenas a um, quem sabe uns 4... Não sei porque não me lembro. Mas não me lembro de nenhuma outra acompanhante antes dela. Será que a vida toda?


Dela sempre escutara os relatos obscuros de sua família e vizinhos. Não que me importasse. Ou me importava e não sabia?


Não me lembrar era comum para um velho como eu. Os 81 anos de minha vida, tirava de mim a potência da lembrança. Isso me causava ansiedade e causara ansiedade também aos meus filhos. Talvez por isso mantinham uma certa distância de casa.


Lembrar é algo necessário. Te faz competente. Não lembrar não é algo ruim. Embora muito se ache. Você condiciona teu cérebro a não lembrar aos poucos, esquecendo coisas que não valem serem lembradas, numa tentativa de silenciar as lembranças, assim como fazem as prostitutas para esquecerem os clientes infernais das madrugadas sujas em bordéis e motéis baratos. Os bêbados não, eles esquecem naturalmente. Os poetas, os poetas querem as lembranças, vivem agarrados a elas. Eu não sou poeta. Eu não bebo. Sou médico, homem da ciência, estou mais para a prostituta.


Após um tempo o cérebro estará acostumado e começará a esquecer por conta própria, e aí que começa o lado desagradável de esquecer e confesso, me sinto um desajustado quando esqueço. Para não dizer desesperado.


Comecei a querer esquecer quando comecei a ter pressa. Sim, eu quis esquecer algumas coisas que já não faziam sentido, coisas desnecessárias, obsoletas, infernais. Eu tinha pressa para tudo! Andar, escovar os dentes, ler, comer, caminhar... não eram mais tarefas tranquilas do dia a dia. Não era apenas uma angústia, era uma avidez de que fazendo tudo ao mesmo tempo, teria mais do tempo que me restava, como sê, ou com a consciência de que, não haveria mais tempo de fazer tudo o que me propusera a fazer na vida... E percebera amargamente que meu corpo e mente estavam cansados.


Eu, um velho, cansado e farto de querer compensar o tempo, decidi que para abrir espaço, precisava esquecer as bobagens, assim estaria como que me abstendo dos excessos e comecei fingindo que esquecia. Inútil tarefa. De que adiantaria a pressa? O tempo passava e mais o cansaço se sobreponha sobre mim. Desisti da pressa, mas.... Era tarde, minha mente já não me obedecia.


Eu percebi que ninguém se importava com meu fingimento e até percebiam o esforço. O esforço bobo de um velho que fingia. Isso só caia bem aos poetas. E quando comecei a esquecer de verdade, já não tinha credibilidade. E eu ria momentaneamente disso, achava graça o resultado inesperado de minha tolice.


Olhei no espelho e num exercício diário me concentrei... Meu nome é Lauro Dias Calado, tenho 81 anos, 2 filhos; o Pedro e a Paula, ambos casados e que não moram comigo; sou viúvo de Cláudia, e médico aposentado; Moro em um apartamento na Tijuca, próximo a igreja dos Capuchinhos - Rio de Janeiro, já fazem 40 anos.


Repeti 3 vezes no espelho meu exercício, não podia esquecer de tudo, existem coisas importantes a serem lembradas com afeto enquanto houver a possibilidade, havia coisas absolutamente importantes de serem lembradas, meu endereço, por exemplo. E havia necessidade sim de repetir. Para não esquecer eu repetira sempre, às vezes desnecessariamente. Não usava colas como bilhetes, ou gravações, nenhum tipo de trapaça.


Ao terminar minhas necessidades e o exercício do não esquecimento, fui para a cozinha preparar o café.


Tomado de uma ausência fiquei meio perdido... Onde será que guardei o coador de pano?


- Cláudio, seu velho maldito, esforça-te! A delícia matinal valerá o esforço.


Era uma incógnita a qual não sabia responder, certamente mamãe havia escondido para que eu não pudesse tomar meu café matinal. Que ideia! Mamãe não o faria...


- Por que o faria?


Mas talvez ela se preocupasse com um velho solitário e distraído usando o fogão. Isso me irritava profundamente, que audácia! E insistia em minha busca teimoso.


Comecei pelos lugares possíveis, e os lugares possíveis significava procurar justamente nos lugares impossíveis; forno, lixeira, nas roupas para passar, na despensa, dentro da máquina de lavar, freezer... Levei uns 15 minutos talvez, nessa busca quase luta que estava prestes a perder quando parei no meio da cozinha e do nada esqueci o que estava procurando e não só isso.


Tive um branco geral, e nem sei como vos relato agora o que me ocorrera. Mas tenho essa necessidade de lembrar das coisas, se possível com detalhes. É que pratico um exercício de não esquecer. Para que assim, meu cérebro volte a lembrar sozinho. Sim, é isso!


Esqueci! Como pode isso? O que era mesmo? Fiquei parado ali, não sei quanto tempo! Absorto... Ridiculamente absorto. Nenhum pensamento entrava em minha alma ou mente, nem mesmo a brisa que entrava pela janela, ou os primeiros raios de sol em minha face me tirava de meu transe... De meu susto, surto, sei lá... de meu medo? Eu estava com medo! Sozinho e com medo e um caos me assolava internamente, e certamente externamente também. Estava tudo um caos. Era como uma meditação, só que ao invés de calma e percepção aguçada, eu experimentava o caos, a perdição. A falta de lembranças e a desconexão total.


Eu, um velho estava com medo e sem memória. Indefeso, sozinho. Como em estado de choque. Chegando ao ponto de não me saber um ser, como algo sem consciência, um objeto. Eu estava me tornando um objeto suspenso no nada? Já que nem onde estava eu me dava conta?


- Que lugar é este? Onde estou? Ainda sei quem eu sou? Eu estou vivo? Já estive vivo na vida?


Não sei quanto tempo ficara ali parado, dentro de um mundo vazio, de pé no meio do nada, cercado de incertezas, apavorado. Tentei lembrar de algo, mas não sabia do que lembrar... Do que lembrar? Como se lembra? E fiquei nesse esforço vão e parecia que só meu coração, a esta altura acelerado, funcionava. Então eu vivia! Comecei a me tatear para ver se me sentia... e sentia!


O interfone tocou, me tirando de meu transe quase luta, de lembrar o que já não sabia que esquecera, de meu surto.


Era o porteiro, o Jonas, perguntando se tudo estava bem. Jonas me salvara do limbo, do meu momentâneo estado vegetativo, seguido de medo.


Jonas se preocupava sempre, todo dia interfonava para saber como eu estava, e de certa forma, naquela ocasião, agradeci por sua preocupação que sempre me irritara. Embora tenha ficado irritado com a pergunta...


- Bom dia Dr! Tudo bem por aí?


"Tudo bem por aí?" Como explicar que eu esquecera de algo que não me lembrava o que é, se não consigo lembrar? Só que para aumentar a tragédia, tentei.


Jonas quisera subir... Para quê? Que utilidade teria?


Disse que não havia a necessidade de deixar a portaria por um velho caduco.


Eu sabia que não demoraria 10 minutos o Jonas estaria em minha porta com alguma desculpa esfarrapada, apenas com o intuito de saber se tudo estaria de fato bem.


Desliguei o interfone e num ímpeto de fúria lancei o pote de pó de café ao chão, e chorei. Chorei como um menino que solta a mão da mãe ao entrar pela primeira vez no maternal.


Lembrei das delicadas mãos de minha mãe e de seus olhos embaçados ao ver os meus cheios de lágrimas tentando disfarçar a sensação de ser abandonado, engolindo o choro e as lágrimas que já alcançavam os lábios.


- Mamãe, no fim você me abandonará, este choro, não é tolo. É constatação. Todos nos abandonam. As crianças sabem disso, mas tentamos enganá-las e elas crescem e esquecem, e passam a vida construindo elos que as façam crer nessa ilusão de que estão seguras ao lado de pessoas amadas.

Sou médico, e sei exatamente o que estava a me ocorrer. Da medicina não esquecera! Sei (por exemplo), exatamente como diagnosticar uma inflamação no nervo ciático. O paciente certamente se queixaria de desconforto nos rins. Alguns toques no corpo afetado e eu já descartaria os rins, alguns passos do paciente e sei, que ao andar como se estivesse carregando um balde, com o corpo pendendo para um lado devido ao repuxo do nervo, certeiro seria a inflamação no nervo.


Foram décadas lidando com a medicina. Não, eu não estava me tornando incapaz, certamente estava apenas exausto. Acordara cedo demais, precisava descansar. Isso, voltaria para a cama e dormiria até Amália chegar. Ou talvez devesse apenas tomar uma xícara de café para despertar de uma vez por todas. Eu sei fazer café, eu tenho essa capacidade, basta água fervente, os utensílios, pó de café e pronto! Mas o que acontecera? E eu chorava copiosamente sem respostas. Eu ansiava por respostas, a vida toda as tivera, como não as teria agora? Eu sabia a resposta, não queria saber, juro!


Estava me tornando incapacitado pela demência. Mas o que é ser capaz? O que é a capacidade senão um amontoado de conhecimentos e aptidões... Sim, eu ainda tinha muito do que me orgulhar sobre ser capaz. Ou regrediria ao menino que sem o total manejo das mãos miúdas, não conseguia amarrar os próprios cadarços? Já não bastava passar o dia com uma babá de prontidão? E ainda teria agora a necessidade de outras babás, ou quem sabe de um asilo, ou ainda, a necessidade de revezar nas casas de meus filhos. Não, não, eles não têm o preparo para lidar com um velho incapaz e se o fizessem seria por pura obrigação. O que seria de mim? Estar ali abandonado, ausente, num apartamento de mais de 40 anos me deu a total noção do que era a solidão. E isso não se deu apenas diante daquele exclusivo esquecimento, isso já me ocorrera desde que Cláudia se fora e me vi sem minha amada. Eu sabia que a partida de Cláudia seria o início derradeiro de meu fim e de certa forma, arrogante, me entreguei ao desmazelo. Estava diante da tão temida solidão então. E agora diante da ausência de mim mesmo.


Ou seja, se você tiver uma boa vida no final, você também se abandona? Você parte de você mesmo?


Capaz? Quem que se garante capaz? Diante de um dia de sol, sentando num jardim a observar as flores que desabrocham, e as que morrem, e o vento sacudindo as árvores, suas folhas mortas despencando ao chão. Quem se garante capaz de compreender a existência ou o definhar de uma vida?


Incapaz? Quem poderia me dizer incapaz? Por um simples apagão da mente no meio da cozinha quando aos 81 anos ainda vivo sozinho, tenho asseio, sou contribuinte, um amante de estórias, e embora não mais pratique a medicina, ainda sou um bom médico... Quem em sã consciência seria capaz de me dizer incapaz?


Eu mesmo?


A campainha tocou e era o Jonas com meu jornal em mãos. Enxuguei meu rosto, tomei coragem e abri a porta.


Jonas falou, falou e não conseguia e nem queria prestar atenção, apenas assistia aquela boca cheia de dentes e salivas que salpicavam ao ar se movendo e emitindo sons a minha pessoa... Ofereci um café numa tentativa de ser agradável, Jonas não aceitara. Tomei coragem e o interrompi já me preparando para fechar a porta. Ele insistiu um pouco mais tentando prolongar a conversa, eu não estava para conversas, embora fosse comum, eu prolongar as conversas. Não, não estava confortável, estava desanimado! E queria cortar qualquer conexão com o mundo.


Enfim, consegui me desvencilhar de Jonas e fechei a porta. Me encaminhei à varanda onde ficava minha rede com o jornal em mãos. Queria aproveitar o sol matinal e esperar por Amália. Amália era minha acompanhante, além de acompanhante, fazia todo o trabalho doméstico do apartamento. Pontual, chegava todo dia às oito da manhã. Me distrai lendo as notícias até que o sino da igreja badalou oito vezes.


Levantei e da sala ouvia o barulho das chaves abrindo a porta de serviço. Amália chegara, como funcionaria pontual que sempre fora, chegou às oito. Agradável trazia um sorriso e pães numa sacola de papel. Perguntou se eu desejava uma xícara de café. Respondi que sim ao que ela percebeu ao chão o pó. Pensou ter sido um acidente e começara a limpar os sinais de minha rebeldia. Me senti culpado embora não lembrasse o que ocorrera ao pó.


Esquecido de meu jornal dessa vez me encaminhei a sala me sentando ao sofá. Escutei Amália perguntando:


- Dr, o Sr sabe onde está o coador de pano?


- Na porta da geladeira! Respondi em alto tom. Amália não chegava aos sessenta, como pode? Tão jovem


...Tão esquecida!


Eu já falei de Amália?


Amália Dias Calado, minha mãe. Mulher pontual que com grande zelo cuida de mim.


Não, espera... Acho que estou confuso, agora.


Rosangela Ataíde é poeta, escritora e ilustradora.

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