Jornal Poiésis
NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA ÁRVORE

Camilo Mota
Desde menino as árvores exercem fascínio sobre mim. Minha primeira infância transcorreu na roça. Era um tempo de natureza abrindo meus olhos, peito e pés. As memórias de criança são sempre vagas, mais se parecendo sensações, registros que podem ter nascido de qualquer espaço, interno ou externo. No entanto, nalgum canto escuro, preservado pelo tempo, emerge um pé de abiu, mangueiras e paineiras floridas. Elas estão ali preservando raízes.
Meu pai, um pequeno produtor rural na Zona da Mata de Minas, vendeu o sítio, e fomos juntamente com mamãe morar em Petrópolis. No inicio dos anos 70, parecia projeto de vida deixar o campo e ir viver na cidade serrana, cuidando de casa de veraneio. E as árvores ganharam outros contornos. Pinheiros compunham o vasto jardim. No fundo da casa que habitávamos, um bom pedaço de Mata Atlântica fazia vista para o céu e me convidava para explorações.
Dois pessegueiros me contavam da diversidade da vida. De um lado, um de frutos amarelados, sabor intenso, mas de que raramente dispúnhamos, pois que sempre estavam bichados. Próximo da casa, um pé mais jovem anunciava com suas flores que dali a pouco comeríamos doce de pêssego, tão bem preparado pela mãe. Quando descobri minha miopia, a visão mais nítida que tive, já usando os primeiros óculos, foram as verdes folhas do pessegueiro à janela.
Desde então as árvores aparecem pelo caminho como se fossem a projeção interna de um mundo construído de raízes, tronco, folhas, flores e frutos. Cada elemento é um símbolo que me compõe, mantendo minha inteireza. Não raro, quando saio para caminhar ou pedalar, paro por instantes próximo de alguma árvore, para sentir a sombra, ou alguma seiva que invisível parece me unir a ela. Às vezes toco-lhe o tronco, abraço e agradeço.
Dias atrás, eu caminhava um tanto cansado, sentindo certa tristeza sem origem. Meus pés me pesavam, a mente parecia desconectada de algo maior, como se a vida se restringisse a uma sequência de normas e conceitos fixos que devemos ir nos adaptando. Passei por uma árvore frondosa, tronco largo, e aquele primeiro impacto visual me fez ver o quão forte é uma árvore em seu enraizamento profundo, em sua luta diária para estar ali vivendo, servindo de abrigo a outros seres. E tão vulnerável em sua fortaleza. Segui adiante, ergui os olhos e um ipê acabara de florescer. Estava pleno em seu amarelo intenso. A árvore irrigou o meu cérebro com uma força indizível. Como se as raízes estivessem buscando no fundo da minha alma todo o sentido da existência... e encontraram.
As árvores são o meu sintoma de cura. O encontro com o natural proporciona o vínculo de afeto com a criança interior, aquela memória de identidade que me une ao indivíduo que me define desde o primeiro ar que respirei, os primeiros passos que aprendi, a fala que articulei. Quando me perco, nalgum momento, na densa selva da desconexão com o Todo, com isso que sem sabermos direito o que é chamamos de Vida, quando tudo parece apenas um borrão indefinido entre folhas, espinhos e pedras, eis que surge uma sumaúma do espírito para me acordar do transe. Ou uma orquídea florindo num galho de amendoeira.
Viver entre árvores e flores tornou-se um hábito. Uma maneira de sair do concreto armado desse tempo em que muitos carregam rancores, mágoas, desespero ou solidão. Somos animais, homens por assim dizer, e não há como estar no mundo sem nos conectarmos com nossas próprias raízes, sejam as da existência individual, sejam aquelas que nos asseguram sermos partes integrantes e integrais de um planeta que depende da harmonia para que a vida flua em sua força criadora.
Camilo Mota é psicanalista, terapeuta holístico, editor do Jornal Poiésis e membro da Academia Araruamense de Letras.