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Negrinha, de Monteiro Lobato
Atualizado: 26 de set. de 2021

Geraldo Chacon
Monteiro Lobato talvez seja mais conhecido do grande público pela a literatura infantil, mas seus trabalhos mais importantes para a crítica literária são os seus contos, marcados pelo aspecto regionalista e pela visão questionadora. No seu terceiro e último livro de contos, Negrinha, revelou preferência pelo aspecto trágico e patético, embora algumas vezes uma dose de humor negro torne-se presente, produzindo uma sensação de estranhamento. Negrinha possui 22 contos muito interessantes.
Lobato criou suas próprias regras ortográficas, por isso não estranhem palavras com acentuação diferente daquelas exigidas pelas normas tradicionais. Essa é uma das principais características estilísticas do contista de Taubaté.
Nas transcrições, as palavras registradas em negrito são termos que acreditamos ser pouco comuns aos leitores jovens, por isso serão explicados em notas de rodapé.
VAMOS CONDENSAR DOIS CONTOS PARA DESPERTAR O INTERESSE DE QUEM AINDA NÃO LEU ESSE LIVRO
NEGRINHA
“Negrinha era uma pobre orfã[1] de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha[2] escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora[3], a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigario[4], dando audiencias, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma – ‘dama de grandes virtudes apostolicas, esteio da religião e da moral’, dizia o reverendo.
Otima[5], a dona Inacia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viuva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia[6], longe na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
– Quem é a peste que está chorando ai?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.” (p.3)
O choro da menina sempre tinha uma causa, fome ou frio, mas nada disso interessava à maldosa mulher. Assim cresceu a menina, cheia de cicatrizes, marcas da atrocidade de dona Inácia, que, após a abolição da escravatura, conservara a menina só para dar alívio a seus aborrecimentos. Para aliviar o fígado, para matar a saudade dos bons tempos. Enfim, puro sadismo. Foi assim a história do ovo.
A Negrinha tinha xingado uma criada nova, que reclamou com a patroa. Dona Inácia estava azeda aquele dia, precisando muito de um alívio. Foi a conta. Pediu para colocar um ovo para cozinhar e quando ele estava bem quente, pulando na fervura da água, a boa senhora mandou a pobre menina abrir a boca e enfiou-lhe o ovo.
Depois, antes que a menina pudesse dar um grito, amordaçou-lhe a boca com as duas mãos. A menina esperneou inutilmente, urrou surdo pelo nariz, mas ninguém na vizinhança ouviu. Logo depois a megera recebeu a visita do padre e reclamou:
“Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre orfã, filha da Cesaria – mas que trabalheira me dá!” (p.6)
Num final de ano, a santa Inácia recebeu a visita de duas sobrinhas, que vieram passar as férias com ela. Negrinha, vendo os brinquedos das outras meninas, ficou maravilhada. O encanto que a pobre menina sentiu ao ver pela primeira vez uma boneca de louça foi indescritível. As outras, vendo seu êxtase, riram muito e deram-lhe a boneca para pegar.
Dona Inácia chegou e vendo a alegria das sobrinhas, pela primeira vez apiedou-se da órfã e não lhe deu um croque. Pelo contrário, mandou todas brincarem no jardim. Aquilo foi o paraíso para Negrinha. Assim, a menina deixara de ser uma “coisa” e se tornara, pela primeira vez na vida, gente. E foi essa consciência que a matou, pois após as férias, quando as meninas partiram, Negrinha entrou em profunda tristeza; adoeceu, delirou e morreu sonhando com bonecas louras e de olhos azuis. Morreu numa esteirinha velha e desgastada.
“Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira – uma miseria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma comica, na memoria das meninas ricas.
– Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?
Outra da saudade, no nó dos dedos de dona Inacia.
– Como era boa para um cocre[7]!...” (p.9)
1920[8]
Foco narrativo: Terceira pessoa, narrador onisciente.
Espaço: Fazenda, zona rural. Alguns elementos do texto que permitem chegar a essa conclusão é que a menina nasceu numa senzala e morreu numa esteira.
Tempo: A ação se passa nos primeiros anos após a libertação dos escravos, e concentra-se no período da infância (Negrinha está com sete anos.), fazendo uma rápida retrospectiva a partir do nascimento da menina (nascera de mãe escrava e passara os primeiros anos pelos cantos da cozinha, até a morte da mãe).
BUGIO MOQUEADO
O narrador, em primeira pessoa, conta que em certa ocasião estava assistindo a um jogo, denominado “jogo da pelota”. Descreve certas cenas com a gíria típica dos aficcionados e comenta que, se o leitor desconhece esse jogo, nada entenderá dessa linguagem, “que é na qual se entendem todos os aficcionados que jogam em pules ou torcem ”. Perdendo o interesse pelo jogo, o narrador pôs-se a ouvir a conversa de dois velhos que estavam sentados à sua esquerda.
Conta um deles (segundo narrador) que certa ocasião foi até o Mato Grosso para comprar gado de um tal coronel Teotônio, do Tremedal. O homem, segundo ele, era um monstro, barbudo, cara de carrasco, olhinhos de cobra muito duros. Comenta o narrador que ao ver tal figura pensou logo consigo: “Dez mortes no mínimo”.
Apesar da aversão por aquele urutu humano, o narrador foi escolher com ele as cabeças de gado. Depois, foram jantar na casa do urutu[9]. Ao ver a feia casa pensou o narrador em um ditado popular que dizia: “traste que não se parece com o dono é roubado”. Pensou isso porque a casa era tão feia quanto o dono. Durante o jantar apareceu para sentar-se à mesa a mulher do urutu.
Ela parecia não ter um pingo de sangue nas cores do rosto, sem brilho nos olhos, cadavérica, parecendo que havia saído àquela hora do túmulo. “Mal se sentou a morta-viva, o marido, sorrindo, empurrou para o lado dela o prato misterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um petisco preto, que não pude identificar. Ao ve-lo a mulher estremeceu, como horrorizada.” (p.24)
O marido manda a mulher se servir, mas ela permanece como que idiotizada. O marido insiste uma segunda vez, agora com voz cortante e uma ferocidade de fazer gelar o sangue nas veias. E ele mesmo tratou de colocar aquela coisa nojenta no prato da mulher. A morta-viva comeu com dificuldade, demonstrando muito nojo.
Claro que se pode perceber que alguma coisa horrível estava acontecendo ali naquele momento, mas o narrador não conseguia imaginar sequer o que era. A mulher dirige a ele um olhar suplicante, como quem pede socorro. Ele, temendo demonstrar qualquer sentimento que desagradasse ao urutu, desvia os olhos para a despensa, onde se podia ver uma grande manta de carne dependurada, talvez de carne seca. Nisso o marido perguntou-lhe:
“É curioso?” e complementou: “O inferno está cheio de curiosos, moço...”. Depois de uma pausa, o urutu continuou: “Coisas da vida, moço. Aqui a patroa pela-se[10] por um naco[11] de bugio[12] moqueado[13], e ali dentro há um para abastecer este pratinho... Já comeu bugio moqueado, moço?” (p.25)
O narrador fica horrorizado e diz que não, porque para ele seria o mesmo que comer gente. O primeiro narrador volta ao jogo, mas diz que não tem sorte e resolve dedicar sua atenção à história, que parece ser mais intrigante do que a pelota. O segundo narrador continua sua história de suspense e de terror.
“Um dia, em Três Corações, tomei a serviço um preto de nome Zé Esteves, traquejado da vida e serio, meses depois virava Esteves a minha mão direita. Para um rodeio, para curar uma bicheira, para uma comissão de confiança, não havia outro. Negro quando acerta de ser bom vale por dois brancos. Esteves valia por quatro.” (p.26)
Continua contando que quando aumentou o serviço, perguntou a Esteves se não teria um irmão forte como ele para contratar, e recebeu a informação de que teve, mas que já tinha morrido, assassinado.
“– Pois o Leandro – não sei que intrigante malvado inventou que ele... que ele, perdão da palavra, andava com a patroa, uma senhora muito alva, que parecia uma santa. O que houve, se houve alguma coisa, Deus sabe. Para mim, tudo foi feitiçaria da Luduina, aquela mulata amiga do coronel. Mas, inocente ou não, foi que o pobre do Leandro acabou no tronco, lanhado a chicote. Uma novena de martirio – lepte! lepte![14] E pimenta em cima... Morreu. E depois que morreu foi moqueado.
– ‘???’
– Pois então! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram aquela carne na despensa e todos os dias vinha à mesa um pedacinho para a patroa comer...”
Mudei-me de lugar. Fui assistir ao fim da quiniela[15] a cinquenta metros de distancia. Mas não pude acompanhar o jogo. Por mais que arregalasse os olhos, por mais que olhasse para a cancha, não via coisa nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não a pule 13...” (pp.26/7)
1925
Comentário: Encontramos aqui uma narrativa de encaixe. Uma história dentro da outra que lhe serve de moldura. Um narrador que inicia um relato, mas que é sucedido por outro. O primeiro narrador conta que estava apostando num jogo, mas desinteressou-se ao perder. Então escuta uma história contada por outra pessoa: segundo narrador, que conta o caso trágico de um sujeito que foi assassinado por um marido ciumento e o corpo da vítima foi dado como alimento à esposa do ciumento. Uma característica de Lobato que aqui se faz presente é o gosto por histórias trágicas com toques de terror.
Primeiro narrador: jogo da pelota (narrativa moldura)
Segundo narrador: bugio moqueado (narrativa encaixada)
Foco narrativo: Primeira pessoa. O primeiro narrador é do tipo testemunha.
Espaço: O espaço do presente é uma cancha de pelota, provavelmente em cidade grande. O espaço do passado é composto por uma fazenda do Mato Grosso, onde o mistério se instaura, e uma fazenda de Três Corações, onde o segundo narrador vê esclarecido o mistério da fazenda de Mato Grosso.
Tempo: Não há definição de tempo cronológico, mas podemos dizer que o tempo do relato (a narração do drama) segue paralelo ao tempo que dura a partida.
DONA EXPEDITA
“– Minha idade? Trinta e seis...
– Então, venha.
Sempre que dona Expedita se anunciava no jornal, dando um numero de telefone, aquele dialogo se repetia. Seduzidas pelos termos do anuncio, as donas de casa telefonavam-lhe para ‘tratar’ – e vinha inevitavelmente a pergunta sobre a idade, com a tambem inevitavel resposta dos 36 anos. Isso desde antes da Grande Guerra. Veiu o 1914 – ela continuou nos 36. Veiu a batalha do Marne; veiu o armisticio – ela firme nos 36. Tratado de Versalhes – 36. Começos de Hitler e Mussolini – 36. Convenção de Munich – 36...” (p.178)
Tendo ficado sozinha no mundo, Expedita especializou-se em lidar com patroas. Mudava de emprego para mudar de ambiente. Com a experiência descobriu que o melhor modo de tratar um novo emprego era por telefone. Isso permitia que falasse como se fosse uma amiga procurando o emprego para ela e sondar melhor as exigências da nova patroa, o tipo de trabalho e o salário.
Um dia, deparou com um anúncio que oferecia um emprego de 400 mil réis. Era tão bom o salário que ela apressou-se a ir lá. Chegando ao local, viu que havia muita gente, mas as mulheres entravam risonhas e saíam de cabeça baixa. Ao entrar, descobriu o porquê. A senhora doente, na cama, explicou que mandara colocar 40 mil réis, mas houve erro no jornal e tinha saído 400.
Depois disso, foi a uma agência e deixou suas indicações e as características do tipo de emprego que pretendia. Pouco depois, foi procurada em sua casa por uma alemã, senhora muito educada e atenciosa. As duas conversam e percebem que estão em tudo de acordo; como deve ser o comportamento de uma empregada e como deve agir uma patroa. Só no final da conversa, dona Expedita descobre que a outra, também, está querendo emprego e foi ali porque não entendera bem o anúncio da agência: “Pois é, respondeu dona Expedita percebendo afinal o qui-pro-quo[16]. Estamos aqui feito duas idiotas, cada qual querendo emprego e pensando que a outra é a patroa”. (p.184)
As duas acabam rindo muito por causa do equívoco provocado pela agência incompetente e anúncio mal feito.
“Dona Expedita filosofou.
– Eu bem que estava desconfiada. A esmola era demais. A senhora ia concordando com tudo que eu dizia – até com os banhos quentes! Ora, isso nunca foi linguagem de patroa – dessas biscas. A gente errou, talvez por causa do telefone, que estava danado hoje – além do que sou meio dura de ouvidos...
Nada mais havia a dizer. Despediram-se. Depois que a alemã bateu o portão, dona Expedita fechou a porta, com um suspiro arrancado do fundo das tripas.
– Que pena, meu Deus! Que pena não existirem no mundo patroas que pensem como as criadas...” (p.185)
TEMÁTICA
Nos contos de Negrinha, podemos encontrar:
· a denúncia do sadismo, da maldade dos(as) fazendeiros(as) e da condição miserável dos escravos e de seus descendentes;
· a defesa da imigração (e migração) como forma de preencher os vazios populacionais que devem explorar a terra e fazer crescer o País;
· o elogio do fazendeiro ativo, trabalhador, a engrandecer sua terra e contribuir para o crescimento do País: “O fazendeiro paulista é alguma coisa seria no mundo. Cada fazenda é uma vitoria sobre a fereza retratil dos elementos brutos, coligados na defesa da virgindade agredida. Seu esforço de gigante paciente nunca foi cantado pelos poetas, mas muita epopeia ha por ai que não vale a destes herois do trabalho silencioso. Tirar uma fazenda do nada é façanha formidável.” (p.16, A geada);
· a preocupação com a ecologia e manutenção da natureza. Às vezes, esse sentimento pode ser paradoxal, pois, subjetivamente, Lobato demonstra uma preocupação mais estética e sentimental do que científica. Em certo momento observa: “A espaços, perdidas na onda verde, perobeiras sobreviventes erguiam fustes contorcidos, como galvanizadas pelo fogo numa convulsão de dor. Pobres arvores! Que destino triste verem-se um dia arrancadas à vida em comum e insultadas na verdura rastejante do café, como rainhas prisioneiras à cola de um carro de triunfo. Orfãs da mata nativa, como não hão de chorar o conchego de outrora?” (p.16) Para pouco depois concluir: “Fazendeiros desalmados – não deixeis nunca arvores pelo cafezal... Cortai-as todas, que nada mais pungente do que forçar uma arvore a ser grotesca”. (p.17, O drama da geada);
· a constatação de que a mudança, a modernidade, o progresso, trazem dor e sofrimento para alguns;
· a denúncia e crítica ao atraso das pessoas e do País;
· crítica à massificação e ao conservadorismo: “Não era homem querido o doutor Bonifacio Torres. Não era querido pela ponderosa razão de pensar com sua propria cabeça. Para ser querido é força pensar como toda gente”. (p.154, Fatia de vida).
OBRA CONSULTADA: Lobato, Monteiro. Negrinha. 1988, SP: Brasiliense. (Utilizado para citações)
[1] A norma diz que deve ser acentuada toda palavra paroxítona terminada por x, ps, ditongo ou ão(s) e ã(s): tórax, bíceps, cárie, órfã. Lobato gostava de romper com as normas gramaticais e tinha suas próprias regras. [2] O diminutivo indica uma atitude de simpatia do narrador pela personagem, assim como a descrição irônica e caricatural demonstra sua antipatia pela sádica dona Inácia. [3] Ironia, figura de linguagem que consiste em dizer algo, mas querendo transmitir exatamente o contrário disso. Pelo texto pode-se perceber que a mulher é uma megera sádica, uma verdadeira peste. [4] Vigário é paroxítono, terminada em ditongo, mas Lobato não respeita as regras. [5] Toda palavra proparoxítona deve ser acentuada: ótima, última, príncipe, trânsito. [6] Chorar, gemer, lamuriar-se, lamentar-se. [7] Cascudo, é dar pancada na cabeça com os nós dos dedos. [8] Cuidado para não confundir. As datas inseridas pelo próprio autor no final de cada conto referem-se ao tempo da criação do texto, à data em que ele terminou de escrever. O tempo da ação precisa ser descoberto no corpo da narrativa, se for expresso, ou implícito. [9] Ao chamar o fazendeiro de urutu, cobra venenosa, o narrador pratica uma metáfora, figura de linguagem que consiste numa comparação implícita. [10] Pelar, nesse contexto, significa gostar muito a ponto de fazer sacrifícios para ter aquilo de que se gosta. [11] Pedaço. [12] Macaco, guariba. [13] Moquear é a forma de conservar a carne, secando-a sobre uma grade de varas em cima de um braseiro. [14] Onomatopeia, figura de linguagem que consiste em reproduzir por imitação os sons naturais. [15] O mesmo que partida, jogo. [16] Quiproquó, do latim quid pro quo, que quer dizer “confusão duma coisa com outra”, situação cômica resultante de equívocos.