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Natal em frente ao puteiro



Matheus Fernando Rua Acre, número 56, no pé do morro da Conceição, Rio de Janeiro. Eu nunca achei que passaria uma data como essa exatamente em frente a um puteiro. E nesse dia eu vi uma cena que me desconcertou. Permita-me explicar essa experiência.


Foi entre o dia 24 e 26 de dezembro de 2022, ano passado, não lembro a data ao certo. Fui encontrar uma amiga, a Ana da museologia, no Rio para um famoso “rolê cultural.” Fomos ao CCBB e que está com 2 exposições muito interessantes. A d’Os gêmeos, que por sinal eu não gostei. E a do Walter Firmino que achei um espetáculo. Logo que saímos do CCBB demos uma passadinha no famosinho Museu do Amanhã, ali na praça Mauá.


Terminada nossa breve expedição de meio-dia, já era noite e eu tinha duas opções para chegar na queridinha São Gonça, como diria Seu Jorge. Pegar um Uber até as Barcas, atravessar a poça com ela e logo em seguida mais um busão no terminal de Niterói com destino a São Gonçalo ou, como bem pontuado por Aninha, pegar um busão ali do lado, na rua Acre e saltar em frente ao Shopping na Br 101 e pegar outra condução para entrar em São Gonçalo. Fui pela segunda opção já que estávamos do lado da rua Acre e eu já estou numa fase da vida que faço de tudo para evitar fadiga desnecessária.


Fui para a tal da rua Acre e o ponto de ônibus era no número 56, exatamente em frente a um puteiro. Muito conhecido também como “casa das primas”, ou um lugar onde pessoas trocam uma ou mais horas de prazer sexual por alguns poucos dólares. Reconheci que se tratava de um pelas luzes vermelhas sobre a porta e a luz azul que saía de dentro de um íngreme corredor. Em poucos segundos saiu o que acredito serem duas mulheres de lá de dentro. Roupas curtas de cores bem vivas, bastante maquiagem, salto alto, cabelos molhados ou com bastante creme, batom vermelho e um olhar de quem tem uma vida para ganhar, boletos para pagar.


Esse olhar mudava toda vez que passava um homem. Virava um olhar sedutor, caliente – como diria nossos irmãos espanhóis - que quando olhado de baixo para cima com a cabeça levemente inclinada para frente passa uma mensagem clara de prontidão para o ato que beira a subserviência. Mas quando o possível cliente não parava, esse olhar voltava a ser fúnebre, pensativo, vazio na medida em que fitava o chão que estava coberto de moscas envoltas em sacos plásticos e algumas garrafas de cerveja que estavam pelo chão.


Alguns historiadores relatam se tratar de uma das profissões mais antigas da humanidade, existente muito antes das competições e olimpíadas da Grécia Antiga que datam de 776 a. C. Todavia, todo esse tempo de lá para cá não é sinônimo de um possível avanço ou melhora nas condições de trabalho – na maioria dos contextos - que tangenciam essa realidade que só um profissional do sexo atuante consegue mensurar da melhor forma. A barreira de entrada para esse trabalho é quase nula, na medida que para começar a pessoa já tem o mínimo que precisa, seu corpo, sua carne.


Uma das moças entrou e só ficou uma ali, na rua, em frente a entrada de seu posto. Como a rua estava vazia e não passava ninguém, ela sentou-se na calçada. Era mais nova, aparentava não ter mais de 25 anos, visivelmente cansada, talvez depois de um dia todo de trabalho ela olhava para o chão. Até que ao levantar seu olhar para o outro lado da rua pela primeira vez ela me encontrou e nossos olhares se cruzaram.


Hoje eu não consigo mais ter um olhar judicativo sobre tudo isso. Talvez se as pessoas por um triz de segundo apenas pensassem no contexto, motivos e causas que podem ter a levado até ali possivelmente também não teriam. Meu olhar – que hoje também é um olhar clínico, não tenho para onde fugir – é perpassado pela realidade de percepção que essa moça, assim como todos nós temos uma história. Mas também não possuo um olhar de pena, me paira apenas uma sensação de certa estranheza que também não sei muito bem descrever. Obviamente se trata de uma realidade que eu jamais conceberia para minha filha, por exemplo. Ouvi, recentemente, a história de duas dessas moças numa entrevista onde a entrevistadora foi uma esposa traída por seu marido, exatamente com as duas entrevistadas, repetidas vezes. Ambas relataram suas histórias e pontuaram ser unânimes em todas as suas colegas de classe o desejo ardente de pararem de se prostituir.


Quando nossos olhares se cruzaram pela primeira vez naquela rua, a jovem moça rapidamente se levantou do meio fio e me fitou com aquele olhar quase que pornográfico que descrevi. Só que em poucos segundos de devolutiva ela percebeu que eu não era um cliente em potencial uma vez que não houve um feedback positivo a toda sua intensiva de sedução, da mesma forma em que não houve esquiva de minha parte quanto a encaro. Homens que se consideram mais puritanos ou verdadeiros santos talvez desviasse o olhar, seja por vergonha em relação a condição alheia, seja por medo do famoso pecado em pensamento que muitos deles jamais admitiriam a plenos pulmões na entrada da cidade, muito menos na intimidade conjugal com sua esposa.


Eu simplesmente olhei em seu rosto, olhei para seus olhos. E acredito que foi isso que a incomodou, pois ficou nítida a expressão de dúvida entranhada em medo de sua face. Ela até tentou desviar o olhar por um tempo, mas não havia ninguém na rua, não havia carros passando, havia apenas eu em pé do outro lado da rua e um camelô ao meu lado sentado, enterrado em seu celular. Eu também desviei o olhar por um tempo para não constrangê-la de alguma forma. Mas pela segunda e última vez nossos olhares se encontraram novamente.


Lembro que nesse momento passou um vento austero que levantou algumas sacolas e suas moscas pela rua, algumas garrafas de cerveja rolaram fazendo aquele tilintar do contato do vidro com o asfalto. Começou a querer fazer frio e como ela estava de top e saia curta ela se abraçou na tentativa de não perder tanto calor para o meio. E foi exatamente nesse cenário que nossos olhares se misturaram pela última vez. Não sei precisar se por alguns segundos apenas ou por alguns minutos, eu sei que foi nesse ínterim que se abriu aquela fenda de eternidade, indeterminável, atemporal.


Ela possivelmente tinha a mesma idade que eu. Pele clara, rosto triangular, olhos grandes, vivos. Era uma moça até que bonita, mas que com certeza devia ser muito mais fora daquele personagem, fora de toda aquela maquiagem, de toda aquela indumentária. Marcada talvez por uma ausência paterna, quem sabe pelo abuso infantil? Certamente tragada pelas amizades que também a constituiu, pelas escolhas erradas e assertivas que a levaram até ali. Talvez escolhas feitas na pressa ou no calor de algum momento, mas que deu seu tempo de sobra para saborear cada consequência, sejam elas boas ou ruins.


Aquele retrato, aquela cena, aquele olhar... vulnerabilidade poderia ser a palavra. Foi quando o ônibus para São Gonçalo fechou essa fenda temporal parando entre nós dois. Eu subi no ônibus e enquanto pagava a passagem ao motorista notei que havia um carro preto com o alerta parado do outro lado da rua. E aquela realidade crua, nua e fria se impôs sobre qualquer pensamento que me passava no momento, pois quando eu me sentei no banco o carro saiu cantando pneu... e ela já não estava mais lá.


Matheus Fernando é psicólogo e escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo.

matheusfernando.contato@gmail.com


Foto: Molly Blackbird

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