Jornal Poiésis
“MENSAGEM” DE FERNANDO PESSOA
Atualizado: 10 de mai. de 2021

Geraldo Chacon
Fernando Pessoa compunha como se fosse várias pessoas, vários poetas em um só. Cada um tinha seu estilo e sua temática; Alberto Caeiro, indivíduo simples com versos livres e linguagem coloquial, Ricardo Reis doutor erudito, apresenta temática elevada numa linguagem culta, ao passo que Álvaro de Campos, engenheiro revoltado, em versos livres é capaz de se expressar em gritos. E assinava também seus poemas pessoais, com temática e forma bastante variadas, mas tudo isso ficou sem publicar em vida.
A única publicação sua em nosso idioma foi o livro MENSAGEM.
Esse fenômeno literário que foi Fernando Pessoa, não encontra paralelo em nenhuma época e em nenhum outro país do mundo.
Fernando Pessoa escolheu para MENSAGEM uma forma que destoa de todos os revolucionarismos de seu tempo. Seus versos são musicais, metrificados e rimados. De todos os seus projetos de construção poética, Mensagem parece ter sido o mais estimado e mais trabalhado, tanto que levou vinte anos para concluir essa pequena obra.
Mensagem: um épico em pílulas ou uma bíblia hermética? Mensagem foi editado em 1934, quando ficou injustamente em um segundo lugar em concurso nacional. Essa obra pode ser enquadrada, como vários críticos já o fizeram, no gênero épico por causa de seu carácter nacionalista, cantando os heróis e o passado de Portugal. É considerada por alguns estudiosos como uma nova epopeia lusíada, modernizada. No entanto, estudos recentes em diversas partes do mundo têm revelado que ela é bem mais do que isso.
Confrontando Os Lusíadas e Mensagem notamos logo uma diferença enorme. A epopeia renascentista revela uma unidade e uma sequência lógica impressionante. Camões podia ter uma visão do mundo e conceber sua epopeia refletindo essa visão. Fernando Pessoa, por ser um artista moderno, interioriza-se e não consegue ver a realidade como um todo, coeso, sua visão é fragmentada, parcial, veloz como um flash, daí a fragmentação do seu poema épico em pílulas líricas. Os poemas são como pequenos e fulgentes pedaços de vidro multicoloridos a formar um maravilhoso desenho no caleidoscópio da interação leitor/criador. ESOTERISMO Empregaremos aqui como sinônimos os termos ocultismo, hermetismo ou esoterismo, ou seja, ciência dos fenômenos que parecem não poder ser explicados pelas leis naturais. Conjunto de conhecimentos secretos, propiciado somente aos iniciados.
É possível notar que na estruturação de Mensagem houve preocupação grande com a seleção de determinados números cabalísticos, que se encontram representados no corpo da obra. O três aparece nas divisões O Timbre e Avisos, ambos com apenas três poemas, assim como a divisão de toda a obra em 3 partes remete-nos ao triângulo, símbolo do divino. No Egito antigo adoravam Osíris, Ísis e Hórus, na Índia: Brama, Krishna e Vishnu. Na visão cristã Deus é uno, mas possui três aspectos distintos: pai, filho, espírito santo. Na Grécia antiga, os pitagóricos julgavam o três perfeito e divino porque tem princípio, meio e fim.
Outro número que se destaca é o 7, que é a soma de 4, que representa o humano, com o 3 que é divino. O sete é considerado o número místico por excelência e aparece em muitas culturas. Na nossa, veja só como se repete; são sete os dias da semana e na religião temos as sete virtudes (três ligadas ao espírito: fé, esperança e caridade, ao passo que quatro são humanas: prudência, justiça, fortaleza e temperança.) e os sete pecados capitais. Também são sete os sacramentos e na música, encontramos sete notas; dó, ré, mi, fá, sol, lá, si. Assim como os persas têm sete gênios, em nossa cultura judaico-cristã temos sete arcanjos. Para os hindus há os sete chacras que devem ser despertados pela prática de yoga.
Na segunda parte, Mar Português, aparece em destaque o doze, que representa a perfeição do universo, o equilíbrio cósmico e que pode ser simbolizado ou representado pelo círculo. Para encerrar, outro número cabalístico que muito aparece é o cinco, que representa a expansão, o gosto pelas viagens e aventuras. É o número de quem não teme o perigo e apresenta forte desejo de conhecer tudo e obter experiências. Portanto, é um número que tem muito a ver com a História de Portugal, com a expansão marítima e com o espírito criativo do poeta Fernando Pessoa.
“O quinto Império” Triste de quem vive em casa, Contente com seu lar, Sem que um sonho, no erguer de asa, Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar! Triste de quem é feliz! Vive porque a vida dura. Nada na alma lhe diz mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura. Eras sobre eras se somem No tempo em que eras vem. Ser descontente é ser homem. Que as forças cegas se domem Pela visão que alma tem! E assim, passados os quatro Tempos do ser que sonhou, A terra será teatro Do dia claro, que no atro Da erma noite começou. Grécia, Roma, cristandade, Europa, os quatro se vão Para onde vai toda idade.
Quem vem ver a verdade Que morreu Dom Sebastião? A casa com lareira a ser abandonada é nada mais, nada menos, do que esta vida terrena, este mundo de sombras, que, fatalmente, teremos de abandonar um dia com nossa morte. Então, por que viver presos nesse mundo, satisfeitos, como uma planta, uma raiz? Pelo contrário, são verdadeiros homens aqueles que descontentes, dominam os impulsos da matéria (forças cegas) e procuram o “dia claro”, o mundo melhor que se aproxima do mundo da essência. (Intertextualidade) A intertextualidade é a retomada e inserção de um texto antigo em outro mais moderno. Por exemplo, o episódio do “Gigante Adamastor” de Os Lusíadas de Camões é retomado por Fernando Pessoa no poema “O Mostrengo” em seu livro Mensagem. Em Os Lusíadas, a história é factual, e o leitor pode sair da leitura enriquecido com algumas informações. Em Mensagem, no entanto, se o leitor desconhece a história factual de Portugal, continuará sem saber nada após a leitura, porque Fernando Pessoa revê a História, revisitando-a, colocando-a em outro plano; o metafísico. Nesse plano, o herói não age por vontade própria, mas por insondáveis e misteriosos desígnios. Essa visão está nítida no seguinte poema:
O CONDE DOM HENRIQUE Todo começo é involuntário, Deus é o agente, O herói a si assiste, vário E inconsciente. À espada em tuas mãos achada Teu olhar desce. “Que farei eu com esta espada?” Ergueste-a, e fez-se. Por isso uma obra que, inicialmente, parecia a alguns apenas a expressão do nacionalismo português, logo despertou o interesse do mundo inteiro. Tal interesse não aconteceria se Pessoa se tivesse fechado num nacionalismo estéril, numa história apenas referencial. Ao contrário, o poeta se abriu para o universal através de uma visão mítica, arquetípica, em que se inscrevem os heróis transformados em agentes de uma misteriosa gesta providencial do divino. ULISSES O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo – O corpo morto de Deus Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos creou. Assim a lenda se escorre A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre. Embaixo, a vida, metade de nada, morre. Comentário: Há uma lenda em Portugal de que Ulisses, herói da famosa epopeia grega, teria sido o fundador de Lisboa. A antiga denominação Olisipo, teria sido derivada de Ulyssis +pona = cidade de Ulisses. Fernando Pessoa abre o poema com um paradoxo, recurso frequente em sua obra. Essa lenda é nada, porque não é verdade ou por não haver provas disso. No entanto, ao enriquecer a aridez da vida com o sonho, fecundando-a, torna-se tudo para o povo. VIRIATO[1] Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu. Vivemos, raça, porque houvesse Memória em nós no instinto teu. Nação porque reencarnaste, Povo porque ressuscitou Ou tu, ou o de que eras a haste Assim se Portugal formou. Teu ser é como aquela fria Luz que precede a madrugada, E é já o ir a haver o dia Na antemanhã, confuso nada. Fernando Pessoa, valendo-se de conhecimentos esotéricos da confraria RosaCruz, associa o pastor Viriato à alma núcleo que “lembra o que esqueceu”, permitindo uma ligação com o divino. Logo, esse homem, esquecido pela história oficial, já era a madrugada de uma história superior, esotérica, em que Portugal estava marcado para ser grande. É a ação do fado, do destino, traçado por mãos superiores. [1] Nome de um pastor que viveu no lugar onde seria mais tarde Portugal antes da era cristã. Quando os romanos invadiram a Lusitânia, ele participou da resistência cristã, mas foi assassinado traiçoeiramente no ano 140 a. C. por oficiais subornados pelo inimigo invasor. Geraldo Chacon é poeta, membro da Academia Araruamense de Letras.