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Memorial do Convento, de José Saramago

Atualizado: 8 de dez. de 2021




Geraldo Chacon


Se você ainda não leu esse romance, não deixe para outro ano. Leia antes que termine 2021, essa é uma obra emocionante. A leitura dessa obra é feita de maneira impetuosa, arrastando o leitor para um mundo mágico, em que o encanto tanto pode estar no experimentalismo do foco narrativo e da pontuação, quanto na reconstituição do cenário e do movimento humano nas ruas e nas cidades de um Portugal do final do século XVII e da primeira metade do século XVIII.


Aqui no Brasil, alguns denominam de Neomodernismo, o terceiro momento do Modernismo, como Alfredo Bosi em seu História Concisa da Literatura Brasileira. Para o romance Memorial do Convento, de José Saramago essa denominação não soaria mal, já que uma das características da primeira fase do modernismo foi a experimentação ou o direito à pesquisa estética.


Saramago, em Memorial do Convento, experimenta um foco narrativo cambiante, mutável, transformando-se de terceira para primeira pessoa e vice-versa, além de fazer o narrador principal ceder vez e voz a outros narradores menores que inserem, na narrativa maior, outras narrativas menores, criando, assim, uma verdadeira "babel" de narradores.


Outra experiência significativa é a pontuação original, no sentido de ser diferente, não no sentido de ser única. Já vimos obras em que o escritor procurou eliminar o ponto trabalhando apenas com as vírgulas, como o pouco conhecido Leopoldo Lima, de Ribeirão Preto, com sua Autobiografia Embananada, edição própria, ou o conhecidíssimo colombiano Gabriel Garcia Marques.


José Saramago, com sua forma pessoal de pontuar, obriga-nos a uma leitura mais atenta, a um esforço de concentração maior do que habitualmente estamos acostumados, mas, se isso dá trabalho, também nos envolve mais, nos atira mais ao mundo do texto e ao mundo suprarreal que ele nos revela. Vejamos dois exemplos extraídos da obra:


I

"..., Quando o ermitão apareceu à boca da cova, a rainha avançou três passos e perguntou, se uma mulher é rainha, se um homem é rei, que hão-de fazer para se sentirem mulher e homem, e não só rainha e rei, isto foi o que ela perguntou, e o ermitão respondeu com outra pergunta, se um homem é ermitão, que haverá de fazer para sentir-se homem e não só ermitão, e a rainha pensou um bocado e disse, deixará a rainha de ser rainha, o rei não será rei, o ermitão sairá do ermitério, isso é o que terão de fazer, mas agora farei eu outra pergunta, que mulher e homem serão esses que não são rainha nem ermitão, e só mulher e homem, que é ser homem e mulher não sendo estes ermitão e rainha, que é ser não sendo o que se é, e o ermitão responde, ninguém pode ser não sendo, ..." (pp. 254/5)

Há um narrador, menor, Manuel Milho que, às noites, conta uma história aos companheiros. Notem que sua narrativa, embora não tenha pontos que permitam uma pausa maior, um relaxado descanso, apresenta muitos verbos de elocução (perguntou, respondeu, e disse.) que facilitam ao leitor a identificação de quem está falando. Compare com o trecho seguinte.


II

"..., E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, ..." (p.56)


Aqui, o narrador encarrega-se de mostrar a cena aos leitores de uma maneira direta, colocando as falas como se fosse no teatro, só que uma após a outra, separadas apenas por vírgulas, mas permitindo a identificação pelo emprego de maiúsculas nas palavras que iniciam o período, mesmo que após uma vírgula.

Para facilitar, porque a imagem visual é mais simples e direta do que todo esse nosso discurso, vamos colocar o texto na forma dramática:


Baltasar - E agora?

Blimunda - Se não tens onde viver melhor, fica aqui.

Baltasar - Hei-de ir para Mafra, tenho lá família.

Blimunda - Mulher?

Baltasar - Pais e uma irmã.

Blimunda - Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires.

Baltasar - Por que queres tu que eu fique?

Blimunda - Porque é preciso.

Baltasar - Não é razão que me convença.

Blimunda - Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar.

Baltasar - Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto.

Blimunda - Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, ..." (p.56)


Esse trabalho, feito aqui por escrito, deve ser feito mentalmente pelo leitor. É claro que, após vencer as normais dificuldades iniciais o leitor passa a ter um outro prazer, o entusiasmo de sentir-se coparticipante do processo criativo. Substitui um modo de ler passivo por um novo modo de ler, muito mais vivo e dinâmico.

Outra novidade; como muitos outros escritores modernos, José Saramago dividiu sua obra em capítulos, 25, mas evitou numerá-los por quaisquer das formas tradicionais, preferindo deixar espaço em branco no final de página ou de folha terminal de cada capítulo.



SÍNTESE DO ENREDO


D. João V casa-se com D. Maria da Áustria, que sente dificuldades em dar-lhe um filho. Um frade diz ao rei que se ele prometer construir um convento em Mafra, Deus lhe dará o desejado filho. Faz o rei a promessa e a rainha fica grávida, se é que já não estava e só contara ao seu confessor.

Num auto-de-fé, várias pessoas vão ser castigadas, entre elas, Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda. A filha, enquanto a mãe é castigada, trava conhecimento com um ex-soldado, maneta, de nome Baltasar Sete-Sóis, e o convida a ir para sua casa na companhia do padre Bartolomeu Lourenço. Jantam. O padre sai. Ela convida Baltasar a ficar e ele aceita, só se separando dela, mais tarde, por um acidente.


O padre fez algumas experiências com balões e está engendrando uma máquina para voar. Para construí-la pede ajuda a Baltasar. Um dia, quando a máquina fica pronta, saem os três para um voo experimental. Caem perto de Mafra, terra de Baltasar. O padre desaparece na noite. Baltasar esconde a máquina e vai para casa de seus pais com Blimunda. Esta jamais o abandona.


Baltasar trabalha na construção do convento. Por volta de 1730, quando está próxima a sagração da igreja do convento, Baltasar acidentalmente faz a máquina voar e desaparece.


Blimunda, procura-o por todo o país, encontrando-o finalmente em Lisboa, em 1739, no momento exato em que está sendo executado num auto-de-fé do Santo Ofício.




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