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Medo aprendido
Atualizado: 14 de nov. de 2021

Matheus Fernando
Ontem a noite foi uma noite atípica aqui em casa. Duas visitas ilustres adentraram por minhas janelas desorganizando um pouco do meu cronograma que era trabalhar até a hora de dormir.
A primeira visita chegou com um barulho inesperado como a de uma pedra pequena arremessada num vidro. Tratava-se de um inseto voador, grande... Do tamanho da palma da minha mão, e vale ressaltar que minha mão não é pequena. Aparentemente umas seis patas e duas grandes asas. Quando fui procurar o bicho, o mesmo estava atrás do sofá, ou seja, logo atrás de mim. Eis o conflito...
“Como que eu vou colocar esse bicho para fora agora?” Se fosse uma mera barata eu simplesmente matava. Mas como era um inseto incomum e bem grande, possivelmente com uma certa idade, resolvi respeitar sua história e não matá-lo, o que já me daria um belo de um trabalho.
Tanto se eu decidisse matá-lo assim como colocá-lo para fora não seria nenhum bicho de sete cabeças. Apenas seis patas, duas asas e um palmo de mão. A questão é que da escola donde eu vim, a dinâmica a qual eu fui ensinado em situações do tipo sempre foi um tanto atípica quanto comum.
Desde moleque, desde que me entendo por gente quando uma barata adentrava pelos ares de nossa casa no calor quente que é o verão na querida São Gonça meu pai simplesmente se armava para guerra. Era um evento muito específico. Uma chinela grande daquelas do século XX na mão, sistema nervoso simpático ativado, reação de luta ou fuga; estresse, adrenalina liberada na corrente sanguínea, taquicardia, sudorese, dilatação das pupilas, piloereção e por aí vai. Se fosse levar meu pai ao escrutínio, hoje eu sei que esse era o fisiológico por trás daquele tenso momento.
“Mas poxa, era apenas uma barata…” Eu pensava. Será mesmo que era preciso tanta força e alarde para esmagar aquele inseto contra a parede? Fora a sujeira que aquela intensiva gerava na parede. Acho que era por isso que meu pai fazia questão de azulejar boa parte da casa. Para facilitar na hora da limpeza por causa das baratas…
Ok! Estamos falando de um inseto meio que asqueroso. Dificilmente uma pessoa normal pega uma barata na mão como se pega um grilo - coisa que eu também já tive muita dificuldade de fazer quando era uma daquelas crianças remelentas que vivia na rua. Há relatos (não sei se é verdade) que as baratas sobreviveram às bombas atômicas lançadas pelos EUA às cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 1945. De fato, é preciso de um certo distanciamento de um bicho, um inseto que sobreviveu a tamanha radiação.
Mas sempre que via a cena do meu pai lidando daquela forma com as baratas ou bichos pequenos que nos visitavam lá em casa eu ria e me perguntava se era necessário tudo aquilo. Voltando a cigarra... qual foi a minha primeira reação? Quais foram os impulsos e reações primeiras a tentar lidar com a pobre cigarra? Exatamente como meu pai lidava com os insetos que apareciam lá em casa!
Toda aquela mesma reação de luta ou fuga me sobreveio. Até porque nosso cérebro não diferencia se estamos sob o perigo da ameaça que é estar a 3 metros de um leão com fome, a 2 metros de uma cigarra ou a 1 metro de entrar no elevador, caso esse fosse o meu medo. É tudo perigo e a essa altura vocês já devem ter percebido que talvez 99% dos nossos medos são irracionais.
Eu precisava ter medo de um inseto minúsculo como uma barata? Negativo! Mas foi assim que aprendi. Por associação, vendo meu pai. “Se é assim que meu pai reage toda vez que ele está diante de uma barata, logo isso de fato é perigoso, logo é assim que eu também devo agir.” É uma anedota simples mas quando somos pequenos, é assim que associamos quase tudo. E essa foi uma cena que foi ratificada para mim durante anos.
O que eu via de tal reação do meu pai, foi para com as baratas, mas esse receio foi se ampliando. E essa percepção foi se expandindo para outros insetos maiores e caso isso tornasse meu dia disfuncional ao ponto que eu paralisasse diante de um inseto aleatório por exemplo – o que não é o meu caso – estaríamos diante de um bom motivo para a busca de uma psicoterapia.
Respirei fundo e lá fui eu. Nada que uma boa vassoura piaçava e uma dose a mais de paciência não resolvesse. Poucos minutos depois a cigarra já tinha encontrado o seu rumo e eu já não estava mais sob perigo – psiquicamente falando. Na psicologia há uma premissa de comum consenso que diz que “todo comportamento é comportamento aprendido”... Fiquei pasmo logo após lembrar dessa frase e ao lembrar que quase todo medo da mesma forma apreendemos de outra pessoa, por mais tênue que ele seja como um simples medo de insetos.
Coloquei a cigarra para fora e quando eu olho para o lado o que havia? Um pequeno morcego mancando de uma asa no chão da minha varanda próxima a mim. Pensei na hora “É, hoje eu fui provado pelos deuses e testado pelo mundo animal...” Mais uns 40 minutos de enfrentamento, morcego para fora, janelas fechadas e finalmente, emocional em paz …
Muita emoção para uma noite só, já não tinha mais cabeça para trabalhar. Um copo de suco de maracujá e cama. Duas visitas inesperadas para uma noite comum de chuva, se aquela cigarra estivesse certa no dia seguinte faria sol e tudo voltaria ao normal. E ela estava certa!
Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo.