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  • Foto do escritorJornal Poiésis

MARAMOR




Gerson Valle

Ao amigo José Mariano d’Almeida e Silva, como presente de aniversário em 2018.

“Querida Fulustreca: eu amo você por ser minha querida Fulustreca”. O bilhete de Blumarino não foi enviado a seu destino. Ficou em seu bolso de difícil alcance. Engordara tanto que a mão quase não conseguia entrar nele, de tão apertada que a calça ficara. Depois, o raciocínio também parecia ter embotado com a gordura, e assim aquilo que lhe parecera uma declaração amorosa, a primeira de sua vida, e já com atraso de muitos anos com relação à pessoa de quem desejava uma aproximação mais íntima, poderia ser encarado só como um esboço. Mesmo assim não muito claro para ele mesmo.


Para começar a dama nunca lhe fora companheira. Talvez nem tivesse imaginado alguma aproximação senão amigável. Ambos compartilhavam leituras em uma biblioteca da cidade. De início somente compartilhavam, aliás, a presença na biblioteca, mas acabaram se cumprimentando, puxando um dedinho de prosa, vindo a vislumbrarem pontos de encontro nas margens dos livros, quando se iniciou o compartilhamento propriamente das leituras. Cada um fazia o elogio do que lia, e trocavam-se os livros.


O marido dela a vinha encontrar quando saia do trabalho. Não parecia ter a mesma afinidade que ele no que diz respeito à literatura. Isto fez crescer em Blumarino a ilusão de que a pobre Fulustreca não se completava naquele casamento, e poderia ser que consigo...

Desejava-a como uma sobremesa gostosa. E como não a tinha, apelava para a ingestão de muitos doces mesmo, o tempo todo, o que o foi engordando. Não se reconhecia mais no espelho com a ligeireza do rapaz capaz de roubar raparigas... Talvez por isto mesmo a ideia da petição amorosa fora sendo postergada até só se manifestar no bilhete largado no bolso. Aliás, não só por isto. Seria sua amada suscetível de amá-lo com os excessos de banha que ela mesma lhe provocara, e ao ponto de largar e/ou trair o marido? Com que direito ele se achava merecê-la mais que o outro?


Porque, em duas ou três palavras que trocara com o sujeito, julgou-o de caráter fraco... Julgamento precipitado? Uma frase qualquer de que já nem se lembrava qual fora, lembrou-lhe o “eterno marido” de Dostoiévski. E isto o fez cogitar. Antes de mais nada no próprio Dostoiévski. A novela em questão sempre lhe causava indagações. Difícil é traduzir para si o enunciado de um autor. E quando de cultura tão distante, no tempo e no espaço, então... O que o título significa? Sempre desconfiou que “eterno marido” podia ser uma expressão comum na sociedade russa de Dostoiévski para sujeitos que abrem as asas para ser traídos, por uma necessidade mórbida, docilidade bovina que põe a cabeça com chifres... E aí metade da novela poderia ser entendida como uma leitura de viés não bem conforme o original, se bem que na linguagem paralela, tradução das expressões e costumes similares no ser humano em todos os tempos, mares e lugares... E, diga-se de passagem, que as mudanças temperamentais dos personagens e bruscos golpes das ações às vezes lhe faziam pensar num surrealismo “avant la lettre”... Sim, como pode haver tantos porres e agressões e perdões (como crimes e castigos, impulsos e arrependimentos...) meio inverossímeis numa novela realista? Talvez o frio russo impusesse os álcoois aceitos pela sociedade e as pessoas agissem na imprudência dos arroubos descarados, inconsequentes, sempre úteis à colocação dos caracteres psicológicos nos romances perquiridores da alma? Mas, isto tudo está longe do marido de Fulustreca. Ele, Blumarino, é que surfava num surrealismo pós-moderno, no desejo de se desfazer da gordura incômoda que o afastava do exercício do sexo... E era amor, mais que sexo, o mar em que navegava? Como amar a alma de alguém senão pelo corpo, sexo?


Passou a chamá-la, nadando solitário em seu mar de estima, Fulustreca. Nem tinha intimidade para tratá-la assim. Porém, em sua mente, era-lhe irmão gêmeo. Aproveitou para, intelectualmente, questionar o próprio conceito de amor. O que ama o amor se ele não se conforma com as diferenças personalistas, nem se encontra na traição com uma nova afirmação contrária e igual à de todo casamento conveniente, como a de sua amada, supunha... Suposição tétrica, devia saber o intelectual, pois o aparente “eterno marido” podia dar à sua Fulustreca a necessidade da cama que ela necessitava como amor mais que seu intelecto... Ora, o amor é a identidade. Por mais variadas que sejam as pessoas, só se ama a si mesmo. Ele estava amando o amor em seu mar constante, sem tirar a roupa ou mergulhar? Necessidade de mudança de vida na impossibilidade de emagrecer? “Psicologismos”, torcia o nariz... Porém, a gordura dificultaria uma relação sexual, pelo peso e proporção da barriga, e o coração, tão sujeito a contorções circenses sentimentais, deixava-o sem fôlego, piorando a respiração até o ataque fulminante, tendo o bilhete ainda no bolso... Sua morte explica a frase tautológica em face da vida, em face do amor. Sua redundância amorosa... Querida Fulustreca... Etc. Jamais declararia de novo de o amor desejado ser amor, na frustração trazida na barriga que o distancia do abraço, dois seres impossibilitados de se tocar, longe da sociedade russa de Dostoiévski, mesmo sabendo que lhe veio também de lá a margem a muitas penetrações dentro d’água, lá e de outras plagas, nos livros compartilhados com Fulustreca, tão querida Fulustreca, que lhe fizeram pensar amar o amor, pensar, amar, mar, amor...


Gerson Valle é poeta e escritor, membro da Academia Petropolitana de Letras.

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