Jornal Poiésis
Manuel Preto

Marcelo J. Fernandes
No Dia da Consciência Negra, compartilho uma história pessoal que conto sempre aos meus alunos, mas nunca a publiquei aqui.
Talvez seja a ocasião.
Minha avó materna era de origem galega, de imigrantes simples que vieram de Pontevedra, Espanha. Instalaram-se aqui com as quatro filhas pequenas no Morro do Castelo, e depois de seu desmonte, na rua da Praia, na Gamboa.
Vovó foi criada com tias e primos, e entre eles, havia um menino, filho de uma empregada negra, forra - liberta desde o ventre - chamado Manuel, em homenagem ao avô postiço e espanhol.
A criança cresceu como irmão delas, e na família, recebeu o carinhoso apelido de "Manuel Preto".
Desde sempre ouvia falar dele, de suas aventuras, brincadeiras e histórias entre elas, mas não o conhecia.
Um dia - eu deveria ter uns dez anos - minha mãe recebeu um telefonema e veio feliz dizer que era o Manuel Preto, e havia combinado com ele de vir lanchar conosco, para conhecer a mim e a meu irmão menor.
Dias depois, à tarde, tocou a campainha no apartamento em Copacabana. Fui abrir a porta e deparei-me com um senhor negro muito alto, bonito, sereno, de olhos amarelados, têmporas grisalhas e sorriso discreto, muito branco e um ar tristonho
Educadíssimo e elegante, de voz baixa e pausada, comeu conosco, contou a sua vida, e escutou um pouco da nossa.
Há décadas, era funcionário muito benquisto e graduado de uma antiga papelaria do Centro. Solteiro, sem filhos. A sua família era a nossa.
Trouxe presentes pra nós: eu ganhei um grampeador de escritório, grande, cromado - perdi-o lamentavelmente em alguma mudança -; meu irmão, uma magnífica caixa de lápis de cor.
Pediu licença então para ir embora, e deu-se uma das cenas mais inesquecíveis da minha vida: ao se despedir, ele curvou-se, silente e com os olhos marejados, pegou a minha mão e beijou-a, contrito. Repetiu o gesto com o meu irmão e minha mãe, que lhe disse, sem jeito, "que isso, Manuel...". E o abraçou.
Nunca mais o vimos ou soubemos dele.
Anos depois, já rapaz, eu entendi aquela cena. E chorei compulsivamente horas a fio.
Aquele irmão de criação de minha avó, meu tio-avô, portanto, embora tivesse crescido com as prerrogativas e laços de membro legítimo da família, tomara de nós a "bênção", como se ainda fôssemos "sinhá" e "sinhozinhos"! Séculos de escravidão pesavam sobre a pele e a alma daquele homem especial, que num gesto introjetado em suas raízes, ainda se repetia, já injustificadamente.
Jamais tive a chance de dizer ao meu tio Manuel que ao tomar a minha bênção, era ele quem me abençoava, pro resto da minha vida, num ato que me iluminaria sobre tantas questões, de uma amplitude que ele nunca iria supor, e que talvez absolvesse as minhas culpas ancestrais.
Exceto as mesmas lágrimas que me retornam agora e sempre, ao recordar aquela cena impressa e vívida, que me cala fundo e eternamente.
Sua bênção, Manuel Preto!
Marcelo J. Fernandes é membro da Academia Petropolitana de Letras, Doutor em Literatura (UFRJ), membro do conselho editorial do Jornal Poiésis