Jornal Poiésis
Sagarana
Atualizado: 18 de jan. de 2021

Rosa, João Guimarães – Sagarana, RJ, 1984, Ed. Nova Fronteira. Utilizado para citação.
Geraldo Chacon
Guimarães Rosa escreveu este livro no quarto, durante muitos dias, quase sempre na cama, escrevendo a lápis, durante sete meses. Depois esperou sete anos. Em cinco meses do ano de 1945 retrabalhou os textos e publicou em 1946. São contos regionalistas, todos lindos e emocionantes, numa linguagem muito original. Um deles já foi transformado em filme e em peça de teatro. O Grupo de Teatro Ria já montou um belo espetáculo com 4 desses contos e eu fui convidado para interpretar alguns personagens e fazer a apresentação dos mesmos como se fosse o próprio Guimarães Rosa. Foi uma grande alegria para mim. Vou condensar um deles para você ter uma ideia melhor desse livro.
CONHEÇA UM DESSES CONTOS
Dois homens conversam. Um é culto, letrado, médico. Outro é o pequeno Manuel Fulô, homem simples do interior, metido a valente, falador, contador de casos de valentia, mas na verdade é um medroso. Durante a conversa, falam dos valentes que já passaram por ali, desde José Boi, Adejalma, Miligido, João do Quintiliano até o temível Targino, o valentão do momento. O médico diverte-se com as estórias e paga-lhe cerveja para incentivar.
Há duas coisas que Manuel Fulô mais ama na vida: sua inseparável mula, a Beija-Flor, sábia e mansa; e sua noiva, a “das Dor”. Há um tal Toniquinho das Águas, sabedor das feitiçarias para fechar o corpo de um sujeito contra tiro ou facada. Esse tal Toniquinho tinha uma sela cobiçada por Manuel, que vivia querendo comprá-la, mas o Toniquinho também cobiçava a mula. Assim, o negócio nunca se realizava, porque cada um deles se recusava a vender, só querendo comprar o que era do outro.
Estavam o médico e Manuel conversando, quando entrou o valentão Targino:
– Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor e venho visitar sua noiva amanhã... Já mandei recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês podem se casar... Se você ficar quieto, não te faço nada... Se não... – E Targino, com o indicador da mão direita, deu um tiro mímico no meu pobre amigo, rindo, rindo, com a gelidez de um carrasco mandchu. Então, sem mais cortesias, virou-se e foi-se. (p.293)
Eu perdi o peso do corpo, e estava frio. Me mexia todo, sem querer. Manuel Fulô oscilou para o balcão, mas não pôde segurar o copo; passou a mão no suor da testa... (p.293)
Os dois conversam e Manuel diz que podem entregar a sua Beija-Flor para o Toniquinho. Em troca, Toniquinho fecharia o corpo de Manuel. Todo o vilarejo se esconde na hora fatídica.
O valentãoTargino vai cumprir sua promessa, quando é enfrentado por Manuel Fulô, com sua faquinha. O valentão atira, mas nada consegue e o pequeno acaba vencendo Targino. Ao acabar com o outro, Fulô ainda proclama imponente:
Conheceu, diabo, o que é raça de Peixoto?!
Manuel Fulô fez festa um mês inteiro, e até adiou, por via disso, o casamento, porque o padre teimou que não matrimoniava gente bêbada. (p.300)
ESTILO DE ÉPOCA
Guimarães Rosa pertence à terceira fase do Modernismo, também denominada Neomodernismo ou Geração de 45, porque essa fase teve seu início no ano de 1945. O termo Neomodernismo, empregado por alguns na designação desse período, deve-se ao fato de, nesse momento histórico de redemocratização do país, os escritores se darem o direito de realizar novas pesquisas estéticas, de experimentarem novas realizações no campo da literatura.
Rosa realizou uma verdadeira alquimia verbal, tomando uma língua já desgastada pelo uso de séculos e transformando-a em ouro puro. A língua em si é viva e dinâmica, modificando-se a todo momento numa evolução que pode ter ritmo variado, mas jamais interrompida. Podemos crer que o escritor um dia se imaginou um povo inteiro a modificar a língua de seu tempo, valendo-se de toda sua cultura e de seus conhecimentos de várias línguas estrangeiras, tanto vivas quanto mortas. Ele se tornou um verdadeiro laboratório linguístico, onde o popular se funde ao erudito, criando neologismos, recuperando arcaísmos, valendo-se de regionalismos e ainda emprega recursos próprios da poesia
Presença de aliterações e assonâncias conferindo musicalidade, aproximando prosa e poesia: Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dansa doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai varando..." (p. 24) “Em noite de roça, tudo é canto e recanto. E há sempre um cachorro latindo longe, no fundo do mundo. (p.212), manhã maravilha...gritos de galos e berros de bezerros (p.218), bronze-e-brasa (p.220) Em alguns momentos, essa técnica chega a virtuosismo como o seguinte exemplo em que podemos encontrar métrica e ritmo próprios da poesia popular com verdadeiros versos redondilhos menores: As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão... (p.37)
Emprego de neologismos: milmalditas, drimirim, colossalidade.
Emprego de arcaísmos: fermosa.
Combinação de linguagem erudita com a popular: “húris” (p.100) (termo de origem árabe que designa as virgens belas que esperam no paraíso maometano por aqueles que se mantiveram fiéis à crença mulçumana), “...a cara que aquela gente vai fazer quando me ver...” (p.101) (o gramaticalmente correto é “quando me vir”).
Captação e expressão poética da realidade circundante: Pelo rego desciam bolas de lã sulfurina: eram os patinhos novos, que decerto tinham matado o tempo, dentro dos ovos, estudando a teoria da natação. (p.220) Mas sofri, todavia, porque lua havia, uma lua onde cabiam todos os devaneios e em que podia beber qualquer imaginação. (p.233)
Sinestesia: A voz do Moleque Nicanor é uma comprida carícia.” (p.228) Sinestesia pois carícia envolve o sentido do tato, enquanto comprida tem a ver com a sensação visual, ambas qualificando voz, que se dirige ao sentido da audição, provocando assim uma forte interpenetração do campo sensorial.
A voz do Moleque Nicanor é uma comprida carícia.
audição visual tato