Jornal Poiésis
Lições de um traficante e de um padre

Francisco Pontes de Miranda Ferreira
Concluí no início dos anos 1990 o curso de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC) na área de Jornalismo e o de Geografia na UFRJ, quase que simultaneamente. Tínhamos na PUC uma disciplina obrigatória que se chamava “Ética Cristã” em que fui aluno da professora Lina Boff, irmã do famoso teólogo da Teologia da Libertação, Leonardo Boff. Neste curso me aproximei muito de Lina e procuramos desenvolver um trabalho social dentro da disciplina. Conseguimos, durante o curso, mobilizar um grupo de alunos para auxiliar, na área de comunicação, um projeto da comunidade da Rocinha e outro da bateria mirim da Mangueira. Dentro dos princípios de uma aliança entre academia, comunidade e ética cristã, na forma em que compreendíamos.
Nos últimos anos do curso fui estagiário no Jornal do Brasil, no Caderno Cidade que cobria qualquer assunto que acontecia no Rio de Janeiro, mas principalmente os que interessavam à elite da Zona Sul. Foi quando fui realizar uma reportagem sobre uma comunidade extremamente pobre no bairro da Penha, que se encontrava há dias sem abastecimento de água. Os moradores realizavam um protesto em frente a um departamento da Companhia Estadual de Água e Esgoto (CEDAE) num bairro da Zona Norte, acho que Ramos. Um funcionário da empresa foi agressivo com os manifestantes e jogou um balde de água na direção deles. Quando cheguei na redação escrevi a reportagem e entreguei para o então chefe de reportagem, que não me lembro o nome. Ele me disse: “excelente reportagem, mas não é para o nosso público, aqui é mais Zona Sul”. Achei chato, mas fui calado para casa. No dia seguinte, novamente no estágio, estava chovendo fino e o chefe de reportagem me mandou fazer uma matéria sobre as pessoas que frequentavam a praia de Ipanema em dias de chuva, fazendo esportes como vôlei de praia e surf. A reportagem foi destaque no dia seguinte. Quando me formei finalmente em jornalismo, procurei emprego no Jornal do Brasil, mas não fui contemplado e então decidi falar com a Lina Boff: se ela sabia de alguma oportunidade para mim. Ela me recomendou para Waldemar Boff, outro irmão, que coordenava uma das instituições incentivadas por Leonardo Boff, em Petrópolis, que tinha um jornal popular: Serviço de Educação e Organização Popular (SEOP). Acabei trabalhando anos nesta instituição, realizando imprensa e serviço de comunicação popular e alternativo: para comunidades carentes, associação de moradores, sindicatos, agroecologia. Apoiava também os projetos de comunicação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis (CDDH) e atuei na produção de um documentário para a TV do Sul da Alemanha (SDR) sobre as iniciativas das instituições ligadas ao Leonardo Boff em Petrópolis e na Baixada Fluminense. Organizei iniciativas com jovens em comunidades extremamente podres, junto com voluntários da Alemanha e da Áustria: Vila Leopoldina e Sertão do Carangola em Petrópolis e Vila Inhomirim em Magé. Foi minha primeira grande experiência em trabalho social e jornalismo popular, comprometido com transformações, tipo de iniciativa que nunca mais larguei.
Vou relatar duas experiências interessantes deste período que me marcaram muito: uma envolve um traficante e a outra um padre. A primeira ocorreu quando ampliamos os serviços de comunicação para as novas áreas de atuação do SEOP na Baixada Fluminense, num local chamado Parque Paulista, na divisa entre Magé e Duque de Caxias. O SEOP instalou nesta comunidade pobre e violenta um Centro Comunitário com creche, atendimento às mulheres, apoio aos direitos humanos, comunicação popular e várias outras atividades. Um dia depois do trabalho, nesta região, fui tomar uma cerveja numa birosca local, antes de retornar para casa. E lá estava o traficante da área que se aproximou de mim super emocionado e falou: “se eu tivesse tido a chance de ter tido um apoio social, mais informação, oportunidade, nunca teria me transformado em traficante, muito obrigado pelo trabalho de vocês aqui”. Foi assassinado pouco tempo depois pela polícia, assim como algumas lideranças comunitárias.
Trabalhando também para o Jornal Popular fui realizar uma reportagem em São José do Vale do Rio Preto – outra área de expansão das atividades de comunicação. Trata-se de um município agrícola ligado principalmente à avicultura, mas que tem também extensas plantações de frutíferas. São José foi importante produtora de café de alta qualidade, devido ao clima da serra, durante o período do Império, como parte da região cafeicultora do Vale do Paraíba. Nosso apoio lá era o Dr. Werneck da Fazenda Belém. Ele era muito católico e apoiava a Teologia da Libertação, além de promover na fazenda projetos alternativos agroecológicos e de produção de energia. Werneck foi médico pioneiro na região e nos levava para realizarmos as reportagens de cunho social. Fato que incomodava muito a elite conservadora local. Pelo menos uma vez por mês publicávamos uma página de São José do Vale do Rio Preto. Um final de tarde estávamos conversando na varanda da mansão colonial, sede da Fazenda Belém, e as estrelas começavam a brilhar no céu. Um amigo do Dr. Werneck, padre, também da igreja progressista, estava presente. Ele então contou a seguinte história: “descobri numa noite estrelada como esta que enxergamos muito mais longe à noite do que durante o dia, porque à noite enxergamos as estrelas”. Esta frase me marcou muito por todo o seu significado filosófico, literário e poético. Remete-se à Caverna de Platão, ao Shakespeare com King Lear e muitos outros marcos da literatura. Tem um sentido muito importante de nos revelar que nem tudo que está aparentemente visível é realidade e que o real está muitas vezes invisível na primeira percepção e nos requer uma reflexão.
Francisco Pontes de Miranda Ferreira é Jornalista (PUC Rio) e Geógrafo (UFRJ) com mestrado em Sociologia e Antropologia (UFRJ), pós-graduação em História da Arte (PUC Rio), Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do conselho editorial do Jornal Poiésis. É diretor da Arcalama Serviços de Comunicação (www.arcalama.com.br).