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IRACEMA, de José de Alencar



Geraldo Chacon



APRESENTAÇÃO


Iracema é um romance lírico e trágico, que pode ser classificado tanto como indianista e histórico, por tratar do início da colonização no Ceará. Em virtude da beleza plástica e lírica de sua linguagem, pode também ser classificado como um poema em prosa.


José de Alencar é o verdadeiro criador dos nossos primeiros heróis legendários: Peri, Ubirajara, Poti, Iracema, assim como os homens brancos Arnaldo (O sertanejo) e Estácio (As minas de prata). Esses heróis nascem da carência de um desejo ideal de pureza, heroísmo e liberdade.


ENREDO CONDENSADO


Usamos para citação: Alencar, José de. Iracema. 1988, RJ: Liv. Francisco Alves Ed.



Assim começa o romance:


“Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia[1] nas frondes da carnaúba. [2]


Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros;


Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.


Onde vai a afoita jangada, que deixa rápida a costa cearense[3], aberta ao fresco terral[4] a grande vela?


Onde vai como branca alcíone[5] buscando o rochedo pátrio, nas solidões do oceano?

Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora.


Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano[6]; uma criança e um rafeiro[7] que viram a luz no berço das florestas e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.


A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho das vagas:

Iracema[8]!


O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na sombra fugitiva da terra; a espaços o olhar, empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau[9], onde folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de seu infortúnio.


Nesse momento o lábio arranca d’alma um agro[10] sorriso.


Que deixara ele na terra do exílio?


Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava[11] nos palmares.


Refresca o vento.


O rulo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas e desaparece no horizonte. Abre-se a imensidade dos mares, e a borrasca enverga, como o condor, as foscas asas sobre o abismo.


Deus[12] te leve a salvo, brioso e altivo barco, por entre as vagas revoltas, e te poje nalguma enseada amiga! Soprem para ti as brandas auras, e para ti jaspeie a bonança mares de leite[13]!


Enquanto vogas assim à discrição do vento, airoso barco, volva às brancas areias a saudade que te acompanha, mas não se parte da terra onde revoa.” (p.15)


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Comentários: Observem a grande quantidade de parágrafos muito curtos, quase versos, e a profusão de adjetivos, de figuras de linguagem e a riqueza do vocabulário de Alencar. A cena descrita é um momento presente, como se o narrador a tivesse presenciando nesse exato instante, tanto que se dirige à embarcação, tratando-a como um ser vivo, humano (prosopopeia) e invocando a proteção divina para ela e seus ocupantes. O segundo capítulo, numa retrospectiva ou flashback conta o que aconteceu antes disso, respondendo assim às interrogações que abrem o relato. Traço aqui presente, também peculiar à estética romântica, é o suspense, conseguido aqui por Alencar pelas interrogações, que despertam e prendem o interesse do leitor, que procurará nos capítulos seguintes as respostas esperadas.


A ação acontece no Ceará, tendo o livro como subtítulo: “Lenda do Ceará”. Um narrador em terceira pessoa) conta as aventuras do português Martim (personagem histórico: Martim Soares Moreno) que atravessa a serra do Ibiapaba, perdendo-se na floresta. Surpreende a índia Iracema que havia saído do banho e é ferido por ela. Arrependida, a índia desculpa-se e leva o branco até sua tribo, apresentando-o a seu pai, Araquém, que é o pajé da tribo.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, desperta o ciúme do guerreiro Irapuã, ao proteger o homem branco. Martim e Iracema apaixonam-se, mas esse relacionamento apresenta-se problemático em virtude de alguns obstáculos. O primeiro deles é que ela é da tribo dos Tabajaras, povo inimigo dos Pitiguaras, dos quais Martim é amigo. Além disso, a selvagem é dona do segredo da jurema, planta ritualística e alucinógena, cujo licor leva os índios a viver em sonho, com grande veracidade, todos seus desejos e fantasias.


Martim fica triste por causa de seu dilema amoroso. Iracema, para aliviá-lo, conduz ao bosque sagrado, prepara o licor, depositando-lhe as gotas na boca. Mais tarde, o guerreiro branco pede que ela lhe forneça mais do licor e durante sua “viagem”, Martim sonha com a índia e suspira o seu nome. Iracema não resiste e cede aos seus desejos. Sonho e realidade se fundem.


Aparece Poti (personagem histórico: Antônio Felipe Camarão, que auxiliou os portugueses na luta contra os holandeses) e Martim foge com ele, levando Iracema. Durante a fuga, há luta entre a tribo de Iracema e a de Poti, que estava à procura dele. Os tabajaras são vencidos e alguns têm suas cabeças cortadas e empaladas na entrada da tribo inimiga. Para não fazer sofrer a esposa, Martim constrói uma cabana para ela, afastada dali. Ali a deixa, sozunha, partindo com Poti, para lutar. Isso acontece por duas vezes. Ao voltar da segunda batalha, Martim recebe dos braços de Iracema o filho, Moacir (nome que significa “filho da dor”). Iracema está em absoluto estado de subnutrição, pois além de não comer (por causa da saudade do amado), Iracema chegava a alimentar o filho com o próprio sangue, que fazia aflorar dos seios, dando-os para serem mordidos por filhotes de cão selvagem.


Iracema morre e é enterrada por Martim junto a um coqueiro, assim como ela lhe havia pedido. No final, ele parte com o filho em uma jangada. Esta parte final da narrativa aparece na primeira página do romance, transcorrendo os demais fatos em uma retrospectiva ou flashback. Mais tarde, Martim retorna com muitos guerreiros brancos e um padre, fundando o primeiro núcleo de colonização do Ceará.


Martim retorna acompanhado de muitos guerreiros de sua raça e de um sacerdote, que batiza Poti. Leia mais dois trechos do final desse lindo romance:


“O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quis deixar a terra onde repousava sua amiga e senhora.


O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?” (p.56)


“Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.


Muitas vezes ia sentar-se naquelas doces areias, para cismar e acalentar no peito a agra saudade.


A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema.


Tudo passa sobre a terra.” (p.57)


ESTILO DE ÉPOCA E ESTILO INDIVIDUAL


Alencar é o melhor representante da prosa no Romantismo brasileiro. A sua visão de mundo é baseada no coração, no sentimento. O mundo urbano com seus problemas políticos e econômicos o aborrecem, por isso foge para o passado ou para lugares selvagens. Suas obras procuram retratar um Brasil e personagens mais ideais do que reais, mais como ele gostaria que moralmente fossem (romântico) do que objetivamente eram (realista). Seu romance urbano Senhora, por exemplo, é uma crítica ao que ele reprova na sua sociedade.

O estilo romântico de Alencar supervaloriza o sentimento, o individualismo, o nacionalismo, e idealiza a mulher e a natureza, procurando sempre o que têm de belo e grandioso. O amor prevalece sobre tudo, sendo o elemento propulsor de toda a narrativa.


A linguagem de Alencar é rica, colorida, exuberante, recheada de termos bonitos, de imagens e metáforas atraentes. Além disso, é generosa no emprego da adjetivação, desagradando alguns leitores que preferem um estilo mais singelo e realista. Em alguns momentos, sua linguagem torna-se tão plástica e musical que se aproxima da poesia.


Geraldo Chacon é poeta, membro da Academia Araruamense de Letras.

[1] Segundo a tradição, Ceará significa “canto da jandaia” na língua indígena. [2] Encontramos aqui um caso de apóstrofe, ou seja, vocativo, que se repete nos dois parágrafos seguintes, com o narrador dirigindo-se aos mares e pedindo-lhes que fiquem calmos para que o barco aventureiro possa viajar tranquilo. [3] Já no primeiro capítulo fica explícito o local da ação: Ceará. [4] Vento que sopra da terra em direção ao mar. [5] O mito grego de Alcíone é muito bonito. Ela era filha de Eólo e esposa de Ceíce, que morrendo afogado em uma viagem. Ao tentar afogar-se também, ela subitamente se viu elevada por asas no ar, pousando depois sobre o peito do marido morto. Com pena dela, os deuses deram ao seu marido uma nova vida, mas na forma de uma ave: alcião. As alcíones e os alciões vivem ainda hoje um terno amor e um perene casamento. [6] Perífrase de homem branco. [7] O mesmo que cão, embora o termo rafeiro indique um animal treinado para a guarda do gado. [8] “Em guarani significa lábios de mel, de ira, mel; e tembe, lábios. Teme na composição altera-se em ceme...” Nota do autor. [9] Espécie de estrado na jangada, onde se acomodam os passageiros. [10] Acre, azedo, ácido, duro. [11] Neologismo: fazer ruído. Termo criado por Alencar, que assim se justifica: “É um verbo de minha composição para o qual peço vênia. Filinto Elísio criou ruidar, de ruído.” Atualmente o termo já está registrado no dicionário. [12] Presença do Cristianismo, uma das características do Romantismo. [13] Temos aqui um exemplo de hipérbato, que se caracteriza pela inversão dos termos da oração: “e a bonança jaspeie mares de leite para ti”.

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