Jornal Poiésis
Infância, Satanás e o Elon Musk (Crônica)

Um presságio muito comum que havia no início dos anos 2000 era que “em tempo real, conseguiremos nos comunicar vendo a pessoa por uma telinha e isso independente de qual parte dessa Terra grande essa pessoa esteja.” Quando eu ouvia falar essas coisas pensava: “nossa, que legal! Já pensou falar e ver uma Japinha daquelas de olhinho puxado? Preciso aprender a falar o Japaglês de lá.”
Era um tempo em que no meu bairro o máximo que eu já tinha visto era o famoso Nokia 3310, vulgo tijolão. O mesmo companheiro que eternizou nossa infância com o famoso “jogo da cobrinha” quando isso tudo por aqui ainda era mato! E nessa época sequer podíamos imaginar a possibilidade de haver uma câmera na traseira do celular. Quando a cobrinha chegou em nossa vida, pronto. Eu entendi, “mãe o mundo tá revolucionário, olha isso!” Foi na época em que aos poucos os mais ricos do bairro foram comprando os irresistíveis Nintendos com a possibilidade espetacular de entrar no universo do Super Mário, Mário Kart e Fifa 96 - escrevo este parágrafo emocionado.
O mundo aos poucos foi ficando maior. A maioria das casas tinha aquela TV tanajura do bundão preto e que por sinal tinha uma luzinha vermelha que ficava ligada direto. Eu passava pela sala à noite sempre correndo, tinha certeza que aquela luz vermelha era Satanás me olhando.
Deixando Satanás um pouco de lado, essa época foi um período em que os donos de lan house ganharam muito dinheiro. Até porque pouquíssimas pessoas tinham dinheiro para comprar um computador, que por sinal também era da mesma família da TV tanajura, vide o bundão. O falecido Orkut naquela época aos poucos começou a dar o ar de sua graça; seu primo também falecido MSN, da mesma forma, com o tempo virou febre. Quando de repente, depois de eu e meu irmão muito fazermos pirraça, nossa mãe, com aquele jeito doce de mãe, conseguiu convencer meu pai a comprar nosso primeiro computador. O Positivo. Que de positivo não tinha nada, deveria ser negativo o nome da marca, mas tudo bem.
Em tempos de internet discada que se um meliante membro da família tirasse o telefone do gancho fazendo com que a internet caísse, o estresse corria solto pela casa. “OH MÃE, NÃO DEMORA NO TELEFONE NÃO, POXA!”
A internet era mais lenta que tartaruga. Minha primeira ‘navegada’ pela internet e eu não tive dúvida: X-videos! Era um tempo em que os pais ainda não conversavam sobre sexualidade com seus filhos em casa - ainda bem que evoluímos, hoje em dia esse assunto é comum no seio familiar. Até nas escolas acho que o conteúdo já é parte obrigatória no currículo escolar. E como todo adolescente curioso, eu tinha que descobrir o que os mais velhos do ensino médio tanto viam em seus celulares da cobrinha e compartilhavam via infravermelho.
Assisti toda essa revolução tecnológica regada a muita rua. Se nossos pais permitissem, nós corríamos de casa e voltávamos só à noite. Era eu e minha gangue, meus primos e alguns colegas. Era estilingue pra lá, bolinha de gude pra cá. E briga na rua por causa de pião e canetinha que sobrava no futebol e empurrão pra pegar cafifa avoada e vergalhão que entrava no pé do outro por entrar em terreno baldio correndo e toma-lhe antitetânica. Hoje eu vejo o quanto a rua era perigosa. Cheguei a quebrar os dois pulsos nesses tempos em que as ruas de São Gonça ainda não eram tão assediadas pela criminalidade.
Contudo, não me arrependo de nenhum pulso quebrado assim como de nenhuma briga que entrei para defender meus primos. Na realidade eles que me defendiam mais, até porque eu sempre fui o mais novo da trupe, mas em qualquer possível desvantagem eu também sabia correr. O que sobrou foram boas memórias para contar para meus netos que irão crescer com a cara em alguma telinha dessas da Apple ou da Xiaomi.
Esse turbilhão de memórias me vieram à mente porque ontem estava vagando pelo YouTube numa dessas lives - por mais que eu tente ser produtivo nessa quarentena sobra um pouco de tempo para vagar por aí às vezes. Descobri via live, sem querer, que estava acontecendo o lançamento em tempo real do Foguete Demo-2 da Spacex, empresa do magnata Elon Musk.
O Musk é um daqueles cérebros raros que sempre está pelo menos uns 100 anos à frente de seu tempo e que as próximas gerações estudarão sua biografia, seus feitos e sua descoberta. Foi ele quem foi um dos idealizadores do Paypal antes da virada do século pensando em compras online quando no meu bairro nem celular da cobrinha com infravermelho tinha chegado ainda.
Logo após a venda da Paypal e ter conseguido com ela um tímido saldo em sua poupança, Musk se apaixona por uma ideia e tira-a do papel transformando em empresa a Tesla Motors com a ideia de produzir carros elétricos em larga escala igual aqueles que havia no desenho Projeto Zeta - um dos melhores desenhos transmitidos até hoje em rede nacional pelo Bom dia e Cia. Em maio de 2002 ele começou a iniciativa da Spacex. Uma empresa de tecnologia que visa oferecer serviços para a Nasa e faz aqueles foguetes bem legais que eu lia nos quadrinhos quando pequeno.
Enfim no dia de ontem o Foguete Demo-2 foi lançado. Foi engraçado ver nessa live pelo YouTube como Satanás ressurgiu nos comentários, pois para muitos o próprio Musk é o dito cujo. Uma espécie de Anticristo ou alguma coisa do tipo. Achei engraçado e percebi o quanto o medo do novo reina na cabeça das pessoas, igual nos tempos em que a TV começou a chegar nas casas lá do bairro e o povo falava que era o olho do próprio Satanás entrando dentro de nossa casa. Santa ignorância!
Para ser sincero eu estou curioso. Vi que numa entrevista cedida para um jornal local a alguns anos atrás ele tinha prometido que em poucos anos haveria a possibilidade de pessoas irem morar no espaço. Oi? Isso é sério?
Quais seriam os critérios de seleção dessas pessoas? Quanto seria o preço de um terreno no Espaço? Divide esse valor no cartão? Lá é seguro? O ar lá em cima é mais puro que o daqui da Terra? Se for mais puro eu quero ir morar lá! Lá pega wi-fi? Se fala algum Japaglês específico no espaço? A vizinhança lá é muito chata?
Essas e outras tantas perguntas são as que me acompanham diariamente desde ontem e preciso de respostas! Vi numa dessas entrevistas o Musk meio encurralado pelo entrevistador ao ser indagado sobre esse prazo de testes já que o mesmo se encontra apertado e os acionistas da Spacex estarem pressionando. Coitado, que responsabilidade. Já vi que ele está com o prazo apertado igual a mim para entregar o TCC na faculdade.
Eu compreendo o Musk. As pessoas não entendem e não conseguem respeitar a temporalidade e os processos dos outros. Se você é inovador demais fez pacto com o Diabo. Se demorar demais para entregar um projeto é um irresponsável. Oferecer ajuda ninguém oferece. Paciência… enfim, aguardemos as cenas dos próximos capítulos.
Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo. matheusfernando.contato@gmail.com