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Identificação

Flávia Joss
Na crônica da semana passada, Entre linhas há poesia, que fiz para a minha mãe, coloquei uma epígrafe retirada de um trecho de um poema da minha amiga-poeta Mari Ventura. Ela, assim como eu, é filha de costureira, e em seu primeiro livro, Centelha Poética, dedicou um poema a sua mãe. Quando o li, não contive as lágrimas. Fiz uma viagem pelo túnel do tempo...
É impressionante o poder que a literatura exerce sobre nós, basta uma palavra, um verso que nos pegue... O poeta Sérgio Vaz disse “Poesia não se explica. Ou você entende, ou se identifica.” No meu caso, eu entendi e me identifiquei. Uma memória afetiva e sinestésica, enquanto lia o poema da Mari, consegui ouvir o barulho da máquina de costura da minha mãe. Sendo maio o mês das mães, decidi compartilhar com você leitor, a história costurada, cerzida e arrematada por nossas mães em nossas lembranças.
Entre linhas e letras
Mari Ventura
Nasci entre linhas e afeto.
Cadernos, agulhas, roupas e bordados.
Nasci entre botões sortidos de cor.
Cada bordado, um passo dado.
Entre linhas fui criada, cada ponto, um cuidado.
Cada ponto pregado era uma luta firmada.
Professora, costureira minha mãe se firmou.
Entre linhas e lutas, nossa vida prosperou.
Entre linhas traçadas nos cadernos à mão,
Tempos sem impressora, minha mãe era a professora da nossa comunidade.
Meu pai era agente do núcleo comunitário.
Aquele que mobilizava a todos
Para a associação ser criada.
Entre linhas e lutas, nossos gritos ecoavam.
Nas entrelinhas e em tempos sem internet,
Minha mãe e meu pai eram a rede social.
Escreviam cartas para Tereza, Joaquim, Manoel,
Maria e toda comunidade.
Aqueles que linhas de letras não sabiam fazer, iam
Até a minha casa para aos seus entes escrever.
Entre linhas e lutas fui criada.
Entre linhas dedilhadas, por lápis, canetas e agulhas.
Entre linhas fui criada.
Entre linhas e agulhas,
Pedaladas em uma máquina sem a força de um motor.
Tic tac, tic, tic tac esse era o barulho da agulha no tecido
A cada pedalada na máquina que minha mãe costurava.
Entre linhas, letras e lutas fui criada.
Uma costura, um afago.
Entre linhas e medidas de roupas,
Uma história era contada.
Cada ponto na máquina, era passo caminhado.
Entre linhas, letras, minha identidade se formava.
Mas essa história só foi possível
Porque minha mãe deu continuidade.
Entre linhas e letras me trouxe para a cidade.
Somos filhas das tintas de canetas
E dos pontos caseados.
Nossa história é sobre pontos pedalados, letras compartilhadas.
Nossa vida foi traçada entre linhas, letras e afagos.
Quando olho para linhas de cores e cada ponto nos tecidos dados,
Vejo minha história contada.
Linhas, letras, tecidos e cadernos espalhados pela casa
São o símbolo de uma vida cheia e colorida
Como os pontos caseados, como cada bordado.
Por aqui arremato essa prosa
Entre linhas, letras e muito afago.
Mari Ventura é uma mulher Piauiense que nasceu e vive entre linhas e letras. É professora, artesã e escritora. Entende a escrita como um lugar de essência (subjetividades e plurissignificação), existência (ter voz e vez), resistência (construção, desconstrução e reconstrução de concepções e contextos sociais). Se reconhece como uma poetisa do avesso ao verso. É autora de dois livros Centelha Poética, publicado em 2021 pela editora Litere-se e do livro MULHER MARIPOSA, publicado em 2022 pela editora Voz de Mulher. Em seu perfil no Instagram, @mari.venttura, é possível fazer um passeio por suas reflexões e impressões.
Flávia Joss (@flaviasjoss2_) é escritora, professora de Língua Portuguesa e Literatura, especialista em Gêneros textuais e Interação. Possui cursos de aperfeiçoamento nas áreas de Arte& Espiritualidade, Escrita Criativa