Jornal Poiésis
Identidades territoriais
Atualizado: 9 de nov. de 2020

Francisco Pontes de Miranda Ferreira
Novas territorialidades se formam, marcadas por conflitos históricos e recentes. As antigas territorialidades funcionam como resíduos que se somam a processos de desterritorialização e reterritorialização. Transformações muitas vezes chamadas de “processos civilizatórios” através de uma modernidade que envolve tanto as tradições como a sociedade de consumo contemporânea, sempre com a exclusão dos mais fracos. Os conflitos que se instalam não são apenas da esfera econômica e envolvem também as várias esferas da vida. Nessa complexidade devemos considerar as concepções de rede, que em nossa fase globalizada, sofrem forte influência do capital internacional em que predomina a desterritorialização. Fato que provoca o surgimento de aglomerados de exclusão.
Tratam-se, portanto, de espaços geográficos onde ocorrem relações de identidade e culturais e o domínio e controle político. A política contemporânea se exerce além do espaço físico, na informação e na influência marcante das empresas multinacionais. Assim a produção do espaço inclui as malhas e os nós das redes. Várias formas de disciplina e de controle dos territórios são exercidas e o território pode ser utilizado para excluir pessoas, objetos e relacionamentos. Os espaços naturais são modificados para servirem às possibilidades e às necessidades de diversos grupos sociais que se apropriam dele. No processo de apropriação predominam as dimensões funcionais e simbólicas e no processo de dominação as utilitárias. Apropriação e domínio acontecem ao mesmo tempo. Em alguns territórios prevalecem estruturas tradicionais e em outros as redes modernas, formando-se multiterritorialidades, presentes no mesmo espaço geográfico. As diferenças sociais constroem desigualdades sociais e desterritorializações em que podem ocorrer aspectos positivos de integração e outros negativos de vulnerabilidade. Alguns grupos se consideram superiores e promovem manifestações de preconceitos, racismo e desprezo. Impondo-se um processo considerado universal e único de desenvolvimento.
Grupos sociais de origem mais pobre são muitas vezes considerados sem tradição enquanto que os de origem europeia são considerados cheio de identidade e tradição. A modernidade é caracterizada pelos seus códigos desterritorializados, formando-se uma nova dinâmica territorial. As redes como instrumento de poder provocam a formação de novos territórios e, ao mesmo tempo, desterritorializações. As redes hierárquicas assumem um papel de dominação e outras formam solidariedade. Nas comunidades tradicionais, mais autossuficientes, produção, circulação, distribuição e consumo acontecem de forma relativamente fechada. Na sociedade contemporânea, ao contrário, o processo produtivo ultrapassa a comunidade e representa a globalização técnico-científica. As redes intensas surgem com a modernidade capitalista e ficam ainda mais aceleradas no capitalismo pósindustrial com as redes informacionais, com uma multiplicação de imagens e referências simbólicas e o excesso de fluxos acaba provocando a predominância da desterritorialização. O capitalismo amplia a complexidade da divisão territorial do trabalho e provoca estratégias tanto de hierarquias quanto de cooperação. Assim surge tanto a racionalidade instrumental quanto a racionalidade comunicativa e sistêmica e as redes técnicas e funcionais acabam invadindo também o próprio mundo da vida. As redes instrumentais têm o capital como mecanismo básico e as de solidariedade, com o agir comunicativo, servem como resistência e a construção de alternativas de sobrevivência (HAESBAERT, 1997).
Desterritorialização e projetos industriais
Projetos desenvolvimentistas constantemente transformam várias áreas do país. Fato que ameaça populações locais de deslocamentos e ocorre o processo pela apropriação social da natureza e significados são produzidos e articulados por duas racionalidades em confronto:
1. As populações que resguardam a terra para a família e a comunidade e promovem a memória coletiva e o compartilhamento de recursos e
2. O setor dos grandes empreendimentos com a ótica de mercado e que visualizam o território como mercadoria.
Neste campo de disputas as forças são desiguais e conflitos ambientais são gerados. As barragens construídas para produção de eletricidade são exemplo típico em que a energia produzida beneficia parques industriais, deslocam milhares de pessoas e inundam extensas áreas. Geralmente, atingem os seguimentos mais vulneráveis da população como indígenas, quilombolas e ribeirinhos. O processo de deslocamento da população no Brasil não se limita às barragens e envolve diversos setores como a extensão dos agronegócios e a especulação imobiliária. Na maioria dos casos comunidades rurais perdem sua base natural de existência, assim como suas referências simbólicas-culturais. Os próprios licenciamentos ambientais perpetuam a situação de desigualdade e de injustiça ambiental com as chamadas medidas de compensação e mitigadoras. Existe também um processo de despolitização em que as comunidades se tornam invisíveis. Centralidade absoluta é conferida ao empreendimento e acontece o que podemos denominar de racionalidade econômica instrumental que envolve a própria lógica de consumo. Os empreendimentos ganham o caráter de “salvadores” e prometem tirar a população da miséria e gerar emprego. No entanto, organizam-se também os movimentos de resistência e a ideologia desenvolvimentista é chocada pelas discussões que valorizam o território. Alguns locais como o Vale do Jequitinhonha, ganham uma imagem produzida de pobreza, miséria e estagnação que servem para justificar a chegada dos grandes empreendimentos. As comunidades constroem uma luta em defesa de seu patrimônio e modos de vida que vai além do sentido de propriedade e implica direitos coletivos. O espaço das comunidades é transformado em “lugar”, preenchido por história e memória e capaz de unir a coletividade. Os grandes empreendimentos, ao contrário, criam “não-lugares” extremamente hegemônicos e transnacionais. Ocorre assim uma aliança entre capital, burocracia e ciência em que o ambiente ganha valor de mercado, através da capitalização da natureza. A justiça ambiental pretende superar a racionalidade mercantil e coloca em destaque o reconhecimento de significados culturais atribuídos ao território.
Referências
HAESBAERT, R. Des-Territorialização e identidade: a rede gaúcha no Nordeste. Niterói: EDUFF, 1997.
ZHOURI, A. e OLIVEIRA, R. Paisagens e desterritorialização de populações locais: conflitos socioambientais em projetos hidrelétricos in ZHOURI, A., KLEMENS, L. e PEREIRA, D. B. a Insustentável leveza da política ambiental: desenvolvimento e conflitos socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
Francisco Pontes de Miranda Ferreira é Jornalista (PUC Rio) e Geógrafo (UFRJ) com mestrado em Sociologia e Antropologia (UFRJ), pós graduação em História da Arte (PUC Rio), Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do conselho editorial do Jornal Poiésis. É diretor da Arcalama Serviços de Comunicação (www.arcalama.com.br).