Jornal Poiésis
Identidade no mundo líquido: a desorientação pós-moderna

Francisco Pontes*
Vivemos na chamada modernidade líquida em que quase tudo se torna ilusório e existe uma importante angústia causada pela vida em sociedade. Convivemos com uma sensação de desorientação. A nossa identidade é diretamente influenciada pela internet, pela queda do welfare state, pela sensação constante de insegurança e pela flexibilidade presente no trabalho, na moradia e nas relações. Fato que provoca uma corrosão do caráter.
Vivemos uma identidade que pode ser comparada a um quebra-cabeças, mas sem que possamos ter acesso à imagem final. Não iniciamos o jogo do quebra-cabeças com a imagem final em nossas mentes e sim com um conjunto de peças que foram obtidas ao longo de nossa vivência. Experimentamos assim com o que temos, na busca de pequenas conquistas com os recursos possíveis.
Estamos agora passando da fase sólida da modernidade para a fase fluida. E os fluidos são assim chamados porque não conseguem manter a forma por muito tempo e, a menos que sejam derramados num recipiente apertado, continuam mudando de forma sob a influência até mesmo das menores forças (BAUMANN, 2005: 57).
Neste ambiente fluido não sabemos o que esperar. Temos consciência que não podemos esperar por estruturas duráveis ou sólidas. Pessoas e instituições podem a qualquer momento sumirem ou serem desprezadas. Estamos num tempo comparável aos quadros de Mondriand onde predominam as uniões desarmônicas e destoantes.
O futuro sempre foi incerto, mas no período líquido atual torna-se mais inconstante e incerto ainda. Estamos num tempo em que os próprios acontecimentos do presente não vão necessariamente comprometer o futuro. Predominam incertezas e inseguranças. Uma das essências deste mundo fluido tem sido justamente a busca por uma identidade em que estamos sempre perguntando: “Quem Somos!”.
Uma das características dos tempos atuais é a mobilidade constante em vários aspectos da vida. Em muitos momentos a nostalgia de um passado convive com a modernidade líquida. Procuramos uma forma de libertação, nos sentimos em transição, em processo, em passagem sempre para uma nova dimensão social. Um conjunto entre opressão e libertação age ao mesmo tempo. Procuramos uma ágora como espaço privilegiado para o diálogo. Estamos sempre em busca, muitas vezes para alcançar o impossível. Identificamos tarefas e sonhos que não podem ser alcançadas no tempo real.
Estamos o tempo todo praticando habilidades para contornarmos as ambivalências. Buscamos assim uma aceitação nos diversos ambientes em que convivemos. Inventamos identidades, não descobrimos. Temos um esforço sempre em construção que nunca é concluído e que sempre se encontra em estágio precário. “A fragilidade e a condição eternamente provisórias da identidade não podem mais ser ocultadas” (BAUMANN, 2005: 22). Através de identidades procuramos contornar a crise do pertencimento, tentando criar realidades que estão sempre incompletas. Nossa identidade atual é marcada pelo fim de antigos suportes como nação, família e classe social.
Estamos na constante luta para encontrarmos novos laços. Em busca de novos pertencimentos para a construção de uma identidade. Estamos, portanto, numa insegurança permanente onde predominam relações virtuais no lugar das interações reais. Criamos assim uma ilusão de comunidades. Todos estes aspectos acabam dificultando a construção de uma identidade definida. No celular estamos sempre verificando mensagens que na realidade atrapalham o pensamento concreto.
Temos indivíduos livres do Estado em que cada um procura seus recursos e ferramentas independentes do que o Estado poderia oferecer. Fato que provoca um anseio permanente por segurança e uma busca constante por identidade. Estamos numa posição flutuante sem espaço definido. Ser fixo, inflexível e identificável causa um ruído, um distúrbio que, além de tudo, nos torna mal vistos pelos outros. Estamos na realidade sempre nos mantendo distantes da segurança. Não queremos assumir compromissos. Temos, portanto, uma identidade de “portas abertas”. Vivemos uma completa falta de confiança nos investimentos de longo prazo.
A identidade contemporânea é marcada por destinos desconhecidos, sem influências e controle. Fatos presentes nas relações familiares, de trabalho, de vizinhança. Todos acabam indisponíveis e não produzem confiança. Estamos num permanente medo da solidão e do abandono. Assim, no mundo de hoje o movimento trona-se uma obrigação. Temos que obter velocidade para acompanhar o mundo. Tudo isso só aumenta os riscos.
A facilidade do desengajamento e do rompimento não reduz os riscos, apenas os distribui, junto com as ansiedades que excluem, de modo diferente (BAUMANN, 2005: 38).
Estamos no mundo da individualização, da ambivalência. Tudo consequência direta da sociedade em massa. Trata-se de um mundo complexo, onde um único fator jamais pode resolver qualquer coisa. Precisamos de uma totalidade na experiência da vida.
Temos uma quantidade de miseráveis que nem têm a possibilidade de discutirem identidade. Uma categoria enorme de seres humanos que são oprimidos de todas as formas. Vivem a completa escassez de recursos. Não possuem assim a opção de escolherem identidade. Existem as pessoas que são consideradas de “subclasses” - exiladas na periferia da sociedade que lutam permanentemente por um mínimo de respeito e visibilidade. São estes os analfabetos, as mães solteiras, os sem-teto, os mendigos e os excluídos de todas as formas. Estes vivem a ausência de identidade. Não fazem parte do espaço social. São refugiados e desterritorializados. Habitam, muitas vezes, em não-lugares (BAUMANN, 2005).
Infelizmente, predominam identidades descartáveis, como numa loja de departamentos que nos apresenta várias ofertas. Estamos assim sempre fugindo da exclusão e criamos ilusões de liberdades de escolha. Neste processo a mídia oferece um canal virtual para quem não consegue alcançar a versão real. Onde não precisamos nos identificar de verdade e tudo é rapidamente descartável. As pessoas vivem uma ansiedade permanente em seus comportamentos e nas tomadas de decisões. A sociedade contemporânea tornou as pessoas incertas e transitórias em relação às suas identidades sociais. Tornando-se assim uma vivência “líquida".
Procuramos nos juntar a grupos igualmente móveis. Uma das formas é nos utilizando de celulares. Os fones de ouvido nos colocam em clara posição de indiferença ao mundo ao redor. Os celulares nos permitem desligarmos do mundo da vida real. Temos uma proximidade física com várias pessoas ao mesmo tempo em que temos uma distância espiritual. Assim os flertes extraconjugais são absolutamente toleráveis. As relações interpessoais são, portanto, líquidas. Fato presente no amor, nas parcerias, nos compromissos e nos deveres entre pessoas. Procuramos satisfações instantâneas e reconhecemos os riscos e a imprevisibilidade das relações em conjunto. Nas relações interpessoais evitamos, cada vez mais, os diálogos que são arriscados. Evitamos também os contatos visuais prolongados. Queremos conversas que acabem logo, para iniciarmos uma nova. Evita-se a traição involuntária na imagem através de gestos e de olhares. Trata-se de relações próximas de mercadorias (BAUMANN, 2005).
Vivemos um período de identidade ambíguas. A identidade tornou-se um campo de batalha onde procuramos devorar e ao mesmo tempo nos defendermos de sermos devorados. Sabemos, entretanto, que para alcançarmos a solidariedade é necessário submetermos alguns interesses pessoais. A batalha tem seus elementos de segregação e exclusão, mas precisamos fortalecer os elementos de inclusão.
Presenciamos um esvaziamento das instituições públicas e democráticas relacionadas ao Estado. Fator presente devido às privatizações, ao aumento do controle e à falta de liberdade. Vivemos hoje um Estado sem projeto, marcado pela vigilância, centralizador e autoritário. Hoje nem faz mais sentido mantermos uma união com uma nação. Nossos direitos econômicos estão na mão do mercado e não mais do Estado. Predomina o Estado neoliberal do livre mercado. Não há nenhum Estado que reconheça a totalidade de seus habitantes. Estados promovem assim a incerteza constante de um convívio coletivo. Um Estado que acaba acentuando rivalidades e conflitos. Só o cidadão com recursos é realmente reconhecido e considerado. Presenciamos Estados incapazes de promover a satisfação de todos. Tudo isso acompanhado do recuo do Estado do bem-estar social. Por sua vez, os indivíduos esperam também cada vez menos do Estado e procuram soluções próprias. As pessoas vivem uma permanente desconfiança do Estado. A globalização provoca uma mudança radical no mundo do trabalho que afeta as estruturas, a subjetividade coletiva, a produção, a vida cotidiana e as relações. Marcado pela flexibilidade e a indefinição. Muitos vivem a mobilidade constante no mundo do trabalho, mas muitos não conseguem escapar da dimensão local devido à miséria.
Muitos assim procuram satisfação do patrão, a aprovação no lugar da luta operária. Ser o trabalhador exemplar. Cada empregado disputa por ser o melhor. Contribuir para o maior lucro da empresa. As empresas não favorecem a solidariedade ou a postura de união. As pessoas acabam vivendo projetos de curta duração, preparados para partirem para outra empreitada. Trata-se de um mundo de trabalho altamente concorrido onde não há espaço para se pensar num mundo melhor. O próprio chão da fábrica não proporciona espaço para a organização de um movimento social. Existe cada vez mais obstáculos para a negociação de estratégias e de sonhos comuns. A contradição são os laços que podem se formar em torno de gênero e etnia. Tratam-se de identidades de laços sociais e não de classe. Se manifestam de forma isolada e podem ser multiplicadoras de confrontos. Estamos, portanto, num período de desintegração da noção de classe oprimida. A injustiça econômica não é mais a força de união e sim outras. Forma-se assim no mundo do trabalho as pessoas rejeitadas. Não necessárias ao ciclo econômico. São totalmente incompatíveis com a economia capitalista. Trata-se de um fenômeno mundial. Vivemos na pós-modernidade um também aprofundamento da desigualdade, um aumento do volume de pobreza, da miséria e da humilhação.
O sagrado hoje se aproxima do “medo cósmico” - uma trepidação que se sente diante do imensuravelmente intenso (BAUMANN, 2005). A grandiosidade do universo que nos provoca um medo do desconhecido. Um terror permanente da incerteza. O sagrado acaba se tornando um reflexo deste desamparo. A modernidade que tornou os fatos do antigo sagrado, como Deus, irrelevantes para o cotidiano. Estamos preocupados com as tarefas que podemos realmente manejar no dia a dia. Removemos assim os grandes temas e nos preocupamos com o agora. Tudo resultado deste ambiente fluido, em permanente mudança. Deixamos de nos preocupar com as coisas que estão além de nosso controle. Onde foram parar os sábios que apresentavam fórmulas de felicidade? O mundo atual é desprovido das pontes entre a vida mortal e a eternidade
Na moda predominam os espetáculos relâmpagos. As badalações das celebridades que também são de curta duração. Todos parecem cópias, especialmente produzidos para a mídia. O antigo e durável se tronou completamente fora de moda e ultrapassado. Procuramos as satisfações imediatas com entrega e uso rápido. As coisas devem estar prontas para o consumo imediato.
A humanidade sempre teve ao longo de sua história eventos com o objetivo de promover a inclusão e diminuir a exclusão. Hoje a luta pela inclusão tem um desafio maior que é provocado pela situação fragmentada e dividida da pós-modernidade. Os conflitos externos e internos são numerosos. Temos uma constante ameaça à integração social e à segurança individual. O mundo do trabalho e das relações interpessoais nos exige uma atenção constante. Vivemos assim num estado de alta ansiedade. Acabamos muitas vezes descarregando esta ansiedade de forma egoísta e compulsiva. A sociedade nos exige uma busca por satisfações momentâneas e uma mudança constante de identidades e compromissos. A globalização é um processo selvagem e ameaçador. Precisamos, diante deste quadro, buscarmos soluções coletivas e não isoladas e locais.
As forças globais descontroladas e destrutivas se nutrem da fragmentação do palco político e da cisão de uma política potencialmente global num conjunto de egoísmos locais numa disputa sem fim… (BAUMANN, 2005: 95)
Referência:
BAUMANN, Z. Identidade: entrevista com Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro, Zahar, 2005.
*Francisco Pontes de Miranda Ferreira é Jornalista (PUC Rio) e Geógrafo (UFRJ) com mestrado em Sociologia e Antropologia (UFRJ) e pós-graduação em História da Arte (PUC Rio), Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do conselho editorial do Jornal Poiésis