Jornal Poiésis
Fui traído - crônica
Atualizado: 15 de fev. de 2021

Matheus Fernando
Que raiva. Que papelão. Que vergonha! Nem minha memória, nem o tão cultuado algoritmo conseguiram me ajudar. Fiquei umas três semanas procurando uma faixa de música instrumental no YouTube e nada. Já estava vivendo um processo de luto por ter perdido um fundo musical de uma cena, de uma peça que comecei a escrever em Junho do ano passado.
Acontece da seguinte forma. Quase sempre que vou escrever, uso um fundo musical, seja de piano ou instrumental no YouTube de maneira aleatória. Geralmente o algoritmo já sabe o meu gosto, então ele já anda sozinho e traz os compositores que mais gosto para tocar para mim, tempos modernos.
Em Julho do ano passado comecei a escrever uma peça muito influenciado pelo fundo musical aleatório que foi a trilha do exato momento em que eu estava vendo um turbilhão de imagens e coisas no mundo das ideias. Eu tinha acabado de chegar do Museu de Imagens do Inconsciente no Rio e tinha ficado mais ou menos uma hora observando uma tela, bastante vermelha e com cores do tipo. Não lembro o nome do usuário do ateliê da Dra. Nise que tinha pintado.
Naquelas férias eu tinha ido quase toda terça-feira no grupo de estudos da Dra. Nise, hoje tocado por alguns de seus alunos mais presentes na época. Eurípedes Júnior, o professor Maddi Damião e tantos outros queridos. Com toda essa realidade viva borbulhando dentro de mim, no final das férias e do meu último dia no grupo de estudos, chegando em casa eu senti que tinha que correr para escrever. Tinha alguma coisa dentro de mim querendo pular para fora. Aquelas histórias, aquelas telas sempre mechem muito comigo …
Quando cheguei em casa, word aberto, YouTube afinando os instrumentos e lá fui eu. Surgiu a cena “Do museu para mim”, que mais tarde comporia um personagem que iria se impor mais vezes sobre a folha. Se trata de um usuário do ateliê que sofre com a esquizofrenia e que tem sérios problemas com a bebida. Eu vomitei essa cena nos exatos seis minutos da faixa musical, ali surgiu o personagem. Acontece que eu não anotei o nome dessa faixa musical, nem o nome do autor. E aqui começa a minha angústia.
Vez por outra eu crio situações e cenas sobre essa persona que nasceu naquele dia. Mas eu preciso do fundo musical. E agora ? Nem o YouTube me ajudou nessa. Eu acho que a última vez que tive esse sentimento de perda foi quando Billy morreu. A cena só tem sentido com o fundo, gente! Como que as pessoas não conseguem entender isso ?
Foram três longas semanas procurando o Steve Jablonsky (compositor) sem saber. E não achei, em nenhuma comum playlist de escrita, nada. Foi quando eu lembrei que enviei para um amigo maestro no ano passado ainda, essas e outras faixas de música via link pelo whatSapp. Eu poderia ter escrito em algum lugar ? poderia, claro. E por que não fiz ? Boa pergunta. Fiquei três semanas remoendo essa questão.
Encontrar “Sacrifice” do Steve Jablonsky foi como me alimentar depois de três semanas de jejum. Moral da história ? Quando você mais precisar, tanto a sua memória quanto os algoritmos não irão te ajudar. Não confie. Seja prudente. Anote tudo.
Há uma conspiração no mundo virtual que te encontra na hora de oferecer anúncios e produtos. Eles acham seu celular e seu computador independente de por qual parte do globo você os esconder, basta uma pesquisa. Todavia, quando você mais precisar deste recurso, nada funciona. Sua memória ? A mesma coisa. Ela só serve para te lembrar das safadezas do passado. Quando você mais precisar, ela simplesmente desaparece. Seja prudente como a serpente! Estou a alguns dias com essa indignação misturada à sensação de ter sido traído pelas duas pessoas em quem eu mais confiava. Era só isso que tinha para falar hoje …
Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo.
matheusfernando.contato@gmail.com