Jornal Poiésis
Fazer poesia é em si mesmo uma salvação - Crônica

Matheus Fernando*
"Padre Armindo, são quatro horas da madrugada e é uma hora tão bela que todo o mundo que estiver acordado está de algum modo rezando. Rezo para que o mundo lhe seja sempre bonito de se olhar e de se sentir, rezo para que você goste da comida que come, rezo para você sempre fazer poesia, fazer poesia é em si mesmo uma salvação."
Esse foi o trecho final da crônica da grande Clarice Lispector que foi ao ar no dia 29 de novembro de 1968 pelo jornal do Brasil. Nessa crônica ela transcreve uma oração feita a pedido do próprio padre - também poeta - e que traz luz de uma forma tão leve e acolhedora a alguns questionamentos do padre.
Há um acolhimento especial no fazer poesia. Especial, assim como um tipo de acolhimento muito específico. Singular. Diferente. Um acolhimento cioso, achei a palavra.
Digo cioso e só quem já foi acolhido pela poesia saberá traduzir esse sentimento. Reformulo … só quem já foi acolhido pela poesia conseguiu experienciar esse acolher cioso, visto que na tradução muito da experiência se perde.
Não sei se você reparou mas toda essa oração é uma poesia! Tenho prática de acordar às cinco da madrugada, não às quatro. E quem acorda antes do dia nascer entende muito bem dessa oração. Não se trata aqui daquelas orações feitas dentro de uma igreja ou mesmo de joelhos, votos, enfim. O dia acorda orando, os pássaros amanhecem louvando, as flores aos poucos acordam e já bocejam, desabrochando sorriem e toda criação por conseguinte. Quem nunca se sentiu constrangido a um momento de oração alheio e pelo menos fechou os olhos orando de tabela que seja anátema. Isso acontece todos os dias a partir das quatro da madrugada.
Quem não preza por um mundo bonito e preservado ao seu redor, por sentimentos saudáveis, por um prato de comida decente?
E sobre o fazer poesia … Se eu pudesse obrigaria todos a se aventurarem pelo menos uma vez a mergulharem nesse universo. Muitos correm dele porque na verdade trata-se de um mergulho dentro de si mesmo. Uma vida toda correndo de si para agora simplesmente sentar a frente de uma caneta e um papel?
É preciso de muita humildade com uma dose específica de perguntas sem resposta. Ou não é verdade que algumas pessoas sangram por dentro até morrerem mas não admitem a possibilidade de fazerem uma terapia? Da mesma forma muitos morrem mas não se dão a possibilidade de serem poeta pelo menos uma vez na vida.
Alguns poetas entendem mais de salvação do que muitos teólogos. Passaram e estão passando por um longo processo de humanização. Foram salvos de si! Padre Armindo Trevisan e eu que sabemos…
Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo.