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Democracia enfraquecida e Territorialidades Socioambientais



Francisco Pontes de Miranda Ferreira


A sustentação de uma democracia consolidada sempre foi associada ao alto nível de vida e à qualidade da educação de uma nação. No entanto, a democracia não se consolidou nem nos países mais ricos e educados. O autoritarismo continua uma forma dominante em praticamente todo o mundo e assim a sociedade civil organizada continua em conflito com os meios autoritários de gestão e governança do território. Em todos os países forças poderosas são hostis à participação política universal e alguns direitos básicos, como o saneamento, continuam sendo negados a uma parcela significativa da população. Fato agravado nas nações com menor tradição democrática participativa. Grandes empresários, aliados aos tecnocratas e a setores do Estado, continuam impondo seus empreendimentos e reproduzindo as divisões injustas de poder e de distribuição de renda existentes.


Problemas políticos continuam persistindo, apesar de alternâncias de governos e governantes locais colocam a culpa aos fatores externos pelas carências estruturais, como ausência de recursos e de equipes e equipamentos para a solução do saneamento básico. Ao mesmo tempo, não abrem o espaço para o empoderamento da sociedade civil local organizada e para o desenvolvimento de tecnologias sociais alternativas como os biossistemas integrados, a agroecologia e a bioconstrução. Temos, muitas vezes, discursos democráticos, sistemas de eleições também democráticos, mas, predomina-se o desrespeito às instituições independentes e aos direitos básicos para grande parte da população. A influência popular nas decisões políticas é extremamente baixa e a estrutura de capital econômico e político reproduzida. Precisamos fortalecer um Estado que defenda os interesses da população e não de grupos minoritários poderosos e ricos. O Estado deve ser uma instituição comprometida com a gestão participativa do território.


A única sociedade que consegue tratar todos seus membros com respeito é aquela em que o indivíduo goza dos direitos baseados na cidadania e não por pertencer a um determinado grupo (MOUNK, 2018: 17).


Os inimigos da democracia ainda estão mais determinados e preparados para garantirem poder do que os defensores da democracia participativa. Precisamos reverter esse processo para forjarmos novas territorialidades socioambientais mais justas e ambientalmente equilibradas.


Existe por parte dos grandes empresários um interesse constante em atacar as empresas públicas para justificar a privatização. Muitas vezes, esses interesses contam com ajuda de governos que sucateiam essas empresas. Fato que aumenta a quantidade de argumentos a favor da privatização e o serviço deficiente acaba criando indignação popular. Esse jogo de poder investe contra o aumento da voz dos movimentos contestadores, que defendem as tecnologias sociais e as formas cooperativas de empreendedorismo. Modelos técnicos, geralmente importados, padronizados e supostamente com eficiência comprovada e incontestável, são impostos. Esta centralidade política autoritária faz parte de toda a construção histórica do liberalismo democrático que sempre colocou limites para a participação popular, permitida apenas através da eleição de representantes na política formal e nos conselhos. Estes representantes, por sua vez, geralmente, possuem compromissos com o capital econômico. O tipo de relação de poder predominante criou também os políticos profissionais e os conselheiros quase profissionais. Temos um cenário com uma política cada vez mais afastada das comunidades e de seus interesses, abrindo-se espaço para compromissos empresariais e tecnocráticos.


A democracia moderna foi fundada excluindo o povo, o sufrágio universal só foi conquistado, na maior parte das nações, no início do século XX e a democracia participativa ainda se encontra longe de ser alcançada. Grande parte das políticas locais são diretamente submetidas às regras, leis e resoluções já estabelecidas por instâncias burocráticas e jurídicas como as Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) ou do Ministério das Cidades e não foram produto de amplas discussões participativas. Muitas nem atendem as demandas e necessidades locais. Organizações independentes e locais poderiam estabelecer regras e leis ainda mais socialmente igualitárias ou ambientalmente mais restritas, através de pressão às câmaras de vereadores, mas isso raramente acontece por pouca força das comunidades ou devido ao compromisso dos políticos municipais com o capital econômico.


Em vários casos, quem protege as classes pobres e o meio ambiente é o poder judiciário, que enfrenta o Executivo ou o Legislativo. Temos vários exemplos disso por parte do Ministério Público. Em Teresópolis o MPE exigiu a implantação de um projeto de educação ambiental e saneamento na comunidade carente do Jardim Serrano, defendendo solicitação proveniente do movimento popular e de conselheiros do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. O MPE, também em Teresópolis, investiga projeto de saneamento apresentado por uma empresa e contestado por conselheiros do Comitê de Bacia Hidrográfica. O judiciário, portanto, algumas vezes atua como parceiro de reivindicações dos movimentos sociais, mas, também há casos em que reforça os interesses de uma elite econômica, como defendendo a retirada de certa comunidade de algum local devido à desvalorização imobiliária ou apoiando empreendimento de grande porte.


A quantidade de investimentos de grandes empresas internacionais aumentou muito em praticamente todas as nações. Essas corporações mundiais influenciam as políticas públicas locais em setores como o saneamento. Setor com altos investimentos de grupos financeiros mundiais. Fato que, mais uma vez, reduz o poder das comunidades e organizações populares locais. Assim tecnocratas e empresas internacionais acabam determinando a implantação de seus empreendimentos em detrimento dos interesses do povo e da proteção ambiental. Além disso, as corporações internacionais contam com investimentos mundiais e nacionais de instituições de fomento econômico e de cunho desenvolvimentista como o Banco Mundial ou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). As empresas exigem também a flexibilização trabalhista e ambiental, muitas vezes incentivadas e divulgadas pelos próprios municípios para atraírem investimentos e empreendimento.


A maioria do povo possui muito pouco capital político na gestão territorial. Outra barreira à democracia participativa é que políticos tradicionais e eleitos enxergam a atividade política como oportunidade para aumentarem suas riquezas pessoais. Fato que só é alcançado através de compromissos com empresas que financiam campanhas ou fornecem porcentagens de seus negócios. Nos Estados Unidos a queda do poder político dos sindicatos trabalhistas, a partir do final dos anos 1960, coincidiu com o aumento da prática do lobby nos últimos anos (MOUNK, 2018). Ou seja, crescimento da influência do capital econômico na política, diminui o capital político dos movimentos sociais. Ao mesmo tempo em que as corporações desejam menor interferência do governo na economia, principalmente com leis trabalhistas e ambientais mais flexíveis, trabalham para conquistar parte do governo para fortalecerem seus negócios. Todos esses fatos colaboram para a redução e a limitação do empoderamento popular.


Continuamos com o desafio de transformarmos desejos e necessidades da maior parte da população em políticas públicas. O fortalecimento do neoliberalismo nas últimas três décadas beneficiou mais ainda as elites econômicas e afastaram os movimentos sociais da democracia. Um instrumento que as elites econômicas utilizam também é os meios de comunicação da grande mídia. No entanto, a comunicação pode se transformar em potente ferramenta emancipatória quando produzida fora da grande mídia, nas redes sociais. Para informar, organizar e mobilizar manifestações políticas nas redes sociais não é necessário ser dono de uma gráfica, um estúdio com equipamentos caros ou antenas. A era digital provocará importantes efeitos políticos nos próximos anos, fato que já vem acontecendo, como verificamos no movimento Black Live Matters nos Estados Unidos em 2020 em plena pandemia. A pressão política das manifestações de rua deste evento atingiu as políticas públicas e alguns Estados reavaliaram o comportamento da polícia e realizaram investimentos na área de educação e no combate ao racismo. As redes sociais prestaram um papel essencial para essas manifestações acontecerem com a amplitude que tiveram.


O respeito à democracia encontra-se altamente abalado em vários cantos do mundo. Mounk (2018) nos mostra que em países como Espanha, Estados Unidos, Hungria, Coréia do Sul, Reino Unido e até Chile e Uruguai com recentes ditaduras violentas, vem aumentando a quantidade de gente que defende a eleição de um líder forte sem muita preocupação com os princípios democráticos. Uma das razões para a descrença, a apatia e a falta de participação política dos jovens de hoje é a própria realidade socioeconômica que vivemos. As novas gerações não vivem um aumento contínuo da prosperidade, mas sim o medo. Da Revolução Industrial até os meados dos anos 1970 os padrões de vida estavam em ascensão e a expectativa de vida só aumentava, apesar da existência de uma massa empobrecida. As classes proletárias lutavam por seus direitos e conseguiam conquistar melhorias. A partir dos anos 1980, acontece uma estagnação e até uma queda do padrão de vida e uma perda de direitos para os mais pobres e para a classe média. A partir de 1998, pela primeira vez na história, a taxa de mortalidade teve alta em países como os Estados Unidos (MOUNK, 2018: 156). A grande maioria das pessoas que viveu os anos pós-guerra nunca confiou nos políticos, mas acreditavam no progresso. Conquistavam qualidade de vida e bens.


Adquiriram imóvel, geladeira, televisão e alguns compraram automóveis. Muitos garantiram aposentadorias que hoje sustentam jovens desempregados. Melhoraram de qualidade de vida diante da geração anterior. A partir dos anos 1980, os jovens, ao contrário, vêm vivendo uma queda da qualidade de vida e uma falta de oportunidades. Vivem a incerteza do desemprego, o pânico ecológico e nuclear e a falta de perspectivas diante do futuro. Hoje os jovens raramente conseguem garantir a segurança e o padrão de vida de seus avós. Os jovens de hoje vivem a frustração e isso desenvolve uma desconfiança e uma apatia diante da ação política. No caso do Brasil, escutam as histórias da ditadura militar, mas de forma indiferente. Os mais pobres perderam a esperança em se tornarem classe média e a classe média está empobrecendo. Até pouco tempo, o normal era acreditar-se que cada geração seria melhor do que a outra em qualidade de vida, mas essa lógica está fortemente abalada. Não há, portanto, motivos para se confiar na política e todos os políticos são taxados de “todos iguais”, simplesmente de “ladrões” ou de que “quando chegarem ao poder vão roubar”. Até mesmo os políticos comunitários são vistos com desconfiança, acreditam geralmente que têm algum interesse por trás, econômico ou de se tornarem políticos formais. Realmente, muitos líderes comunitários se tornam vereadores. A geração anterior pensava semelhante, mas contava com um aumento da qualidade de vida e com a esperança de um futuro melhor para si próprios, filhos e netos. No Brasil, a retomada da democracia, após a Constituição de 1988, teve apenas um curto período de melhoria do consumo para as classes mais baixas, mas agora predomina o medo e a incerteza. Mesmo assim, essa experiência democrática pós-ditadura foi muito limitada, com muita pouca influência dos movimentos sociais nas políticas públicas e na gestão do território. O que será que vai surgir dessa nova situação econômica mundial (neoliberal com concentração de renda e privatizações) e que influencia vai ter na política? Será que os movimentos sociais alternativos vão crescer e conquistar capital político? Como novas territorialidades socioambientais vão ser forjadas? Esses são alguns de nossos principais questionamentos que estamos tentando responder.


Referência

MOUNK, Y. The people Vs Democracy: why our freedom is in danger and how to save it. Cambridge: Harvard University Press, 2018


Francisco Pontes de Miranda Ferreira é Jornalista (PUC Rio) e Geógrafo (UFRJ) com mestrado em Sociologia e Antropologia (UFRJ), pós graduação em História da Arte (PUC Rio), Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do conselho editorial do Jornal Poiésis. É diretor da Arcalama Serviços de Comunicação

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