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  • jornalpoiesis

Comprei uma faca Tramontina

Atualizado: 21 de nov. de 2021



Matheus Fernando


Essa semana comprei uma faca Tramontina, daquelas de cortar carne. Daquelas tão afiadas que cortam até um fio de cabelo. E como era novidade, naquele dia eu quis cortar tudo com ela. Descasquei alho, cortei cebola, até rachar os ovos com ela antes de abri-los na frigideira eu fiz. Fiz de tudo um pouco.

E não seria nenhuma novidade se eu falasse que me cortei um pouco com ela, é claro. Cabo longo, prataiada refletindo o meu rosto de tão nova, sedutora a sua eficácia e de tão bom serviço dois pequenos cortes foram o mínimo até o horário do café da tarde. Até que a noite eu fui desfiar o frango que tinha cozido pela manhã com ela.


E para a minha surpresa, a faca reivindicou algo que custou meu sangue. Na curvatura entre o polegar e o indicador uma cissura profunda fora feita sem dó, sem freio, sem possibilidade de esquiva, sem piedade.


Nesse momento fiquei sem reação, ainda não tinha vindo a dor do corte feito, talvez o sangue ainda estivesse quente. Também não havia taquicardia ainda, mas se eu pudesse me ver de fora da cena com certeza estaria com os olhos mais esbugalhados que um peixe fora d’água. Foi quando o melado vermelho começou a descer. E eu estava ali, paralisado pela cena, esperando pela dor que não vinha.


Olhei para a faca que estava em silêncio, mas com um sorriso sonso, de canto de boca, vermelho, como se estivesse conseguido o que queria. Olhei para aquela ligadura entre os dedos com um stacatto no meio e o choro descendo em formato de sangue.

Foi quando decidi num lapso de segundo, sem pensar muito bem, em por o trecho da mão na boca e parar o sangue. E assim eu fiz. Inevitavelmente senti o gosto amargo de meu próprio sangue e foi nesse ínterim que o tempo parou pela segunda vez no meio do ocorrido.


Ali, com a fissura entre os dedos cortada na boca e o gosto do vermelho nas papilas... Me perguntara na hora em pensamento se poderia ter feito aquilo. Se poderia levar sangue à boca, se poderia chupar, ingerir aquela porção. E só essa dúvida já me trouxe um peso na consciência. O vento que corria pela varanda ao passar pela fresta da porta da sala começou a cantar em tom menor nesse momento.

Em outras culturas é permitido acessar sangue dessa forma. Há outras que possuem inclusive rituais com intuitos escusos. Obviamente que minha ação não teve essa intenção. Mas eu fiz. E fiquei mal por isso no momento. Fiquei pensativo, refletindo sobre vários questionamentos que me vieram à mente, redações dissertativas argumentativas inteiras.


Procurei rapidamente em meu banco de dados, de memórias e logo percebi que possuo pouco material a esse respeito. O que me deu mais calafrios ainda. Senti como se tivesse infringido alguma lei, alguma norma, algum estatuto. Não sei se haveria consequências para a ação. Não sei se aquilo fora pecado. Não sei donde vinha aquela compulsão.


Após sair daquela espécie de transe em formato de pensamentos advindos do contato com o meu próprio sangue, rapidamente guardei o frango na geladeira e coloquei a faca de molho dentro da pia numa panela que já estava suja. Logo em seguida escovei bem os dentes e fui deitar ... Mas antes tranquei a porta do quarto. Passei a respeitar mais aquela faca Tramontina depois daquele dia. Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigos.

matheusfernando.contato@gmail.com

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