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CICATRIZES
Atualizado: 5 de set. de 2021

Braz Chediak
Há muitos anos, saí com o ator Jorge Dória para tomarmos um porre. Ele havia se separado de sua mulher, eu havia me separado da minha.
Mais contido, eu guardava um nó na garganta, uma dor no peito. Dória, ao contrário, falava, falava...
Bom ator, demonstrava sua angústia com gestos, imitava a mulher, imitava o travesti que, ele pensava, seria o responsável pela separação.
No terceiro ou quarto uísque esqueci de minha tristeza e, dando gargalhadas, fiquei atento àquele grande comediante que, de repente, mudou de assunto e, falou baixinho: “Chediak, eu estou velho. Daqui a pouco vou embora...”.
Fiquei em silêncio...
Ernest Hemingway disse que “Não morremos de velhos, morremos de velhas feridas”.
Tem razão o mestre: às vezes elas cicatrizam, mas deixam, em seu lugar, manchas da separação. Às vezes elas reabrem: basta um telefonema, um encontro sem querer... e voltam a sangrar.
Nestes dias de isolamento tenho feito constantes viagens por minha própria casa. Tenho descoberto pequenos furos nas paredes, onde outrora havia uma foto, um bilhete, um aviso... e viajo para dentro de mim, vejo rostos, escuto vozes, vejo marcas de encontros e desencontros.
Diz uma lenda oriental que há milênios existiu no Japão uma espécie de pássaro, chamado Hyoku, que ao sair do ovo tinha apenas uma asa. Assim, desde o instante do seu nascimento, ele procurava a outra metade – uma companheira - e, uma vez unido a ela, se completava e cumpria seu destino de pássaro: Voar.
É apenas uma lenda.
Mas agora, diante do computador, penso em quantas vezes voei - em estado de amor -, pleno, feliz, em Três Corações, em Copacabana, em Ipanema...
Em quantas vezes perdi metade de mim e, sem uma das asas, caminhei bêbado pelas ruas, como uma criança, contando as demolições na cidade, a ferrugem dos postes, as lâmpadas queimadas....
Em quantas vezes sentei com um amigo para chorar uma tristeza e acabei dando gargalhadas ou ficando em silêncio pensando em partidas...
Quantas vezes contei e lambi minhas próprias cicatrizes, sem perceber que de tudo isto é feita nossa história.
Que de tudo isto é feito a Vida.
Braz Chediak é ator, roteirista, cineasta e escritor. Roteirista e editor dos filmes A navalha na carne, Dois perdidos numa noite suja, Bonitinha, mas ordinária, Perdoa-me por me traíres, entre outros.