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  • Foto do escritorJornal Poiésis

As armadilhas da memória em Borges




Leonardo Soares*



“Funes o memorioso” é um pequeno conto escrito por Jorge Luis Borges em 1942.


Certamente, o conto em tela não está entre os melhores textos de Borges. A narrativa é simples, assim como o tema. Mas o que chama a atenção nessa criação do argentino é a sua atitude em fazer uso da própria narrativa para refletir sobre o problema da memória. O conto acaba se revelando um belo pretexto para o autor avaliar o papel das recordações na vida humana.

Muito do que discutimos no artigo “O método” aparece de maneira bem condensada nesse pequeno exemplar do universo borgeano. A história narrada é aparentemente simples, quase banal. Borges parte de um narrador fictício que nos transmite as suas recordações sobre Ireneo Funes, nascido em 1868, que parece ter vivido sempre em Fray Bentos, um pequeno vilarejo do Uruguai. Funes era “conhecido por algumas peculiaridades como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio”.

Sobre o narrador das recordações, não sabemos quase nada. A não ser que não se trata de Borges, que nasceu em 1899 (o narrador diz ter conhecido Funes em 1884), e que era nascido em Buenos Aires. Mas no essencial o centro desse pequeno conto não é Funes em si, mas a maneira como o narrador articula as suas recordações sobre o dito.

A vida de Funes, ou melhor, a memória sobre a vida de Funes pode ser dividida num antes e num depois de um fato marcante: a queda de cavalo que sofreu quando tinha 19 anos. Na lembrança desse antes, a vida de Funes transcorreria de maneira banal. Uma vida como outra qualquer. Nesse momento da narrativa, o autor/narrador parece mais preocupado em precisar as balizas do seu enfoque, situá-lo em relação às recordações que são destacadas: “meu testemunho será por certo o mais breve e sem dúvida o mais pobre, porém não o menos imparcial do volume que vós editareis. A minha deplorável condição de argentino impedir-me-á de incorrer no ditirambo - gênero obrigatório no Uruguai; quando o tema é um uruguaio.”

Em certas passagens, como na citada acima, o narrador chega a justificar possíveis equívocos. Não deixa de lembrar que quando seu primo Bernardo, que também havia conhecido Funes, costumava contar suas lembranças, a narrativa “tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores.” Nesta outra, o próprio narrador explicita os contornos do seu relato, que nem sempre se pautam em critérios totalmente objetivos:


“Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto é remoto e débil; eu sei que sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa noite.”

O relato memorialístico não tem como ser uma reprodução integral da realidade vivida. Seus limites são evidentes. O que é lembrado depende inteiramente do que o/a agente que lembra decide lembrar. As recordações sobre os fatos do passado só chegam até nós não porque os fatos tenham ocorrido, mas porque alguém os selecionou num conjunto mais amplo, quase inesgotável.

É como se o jovem estudante portenho quisesse denunciar o cerne da relação entre memória e realidade. Relação sempre incompleta, onde as lacunas fazem parte do cenário. E o que é mais interessante: as lacunas, a incompletude, enfim, os limites da memória não são vistos como um problema. Ele nota que as lacunas de uma história dão a oportunidade a que o leitor exercite a sua imaginação.

A lacuna, a falta, o que não é dito, o que não é visível, tudo isso faz parte da vida. Uma vida sem imaginação não é impossível, mas seria muito mais pobre. Insuportável. Mas o acidente muda tudo. Não apenas a vida de Funes. Ele muda o ritmo dessa curta história também. “Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis.”

O narrador faz questão de frisar que até o momento do acidente que lhe tirou a consciência e os movimentos, Funes vivia. E sonhava. Funes acaba recobrando a consciência, não mais os movimentos. Pior: perde a capacidade de sonhar. O presente se torna “quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais”.


Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc.

O que ocorre então é que Funes perde a capacidade de construir memória de forma humana, pela simples razão de que seu cérebro passa a armazenar a recordação de todos os momentos de sua vida, do passado e do presente. Tudo é feito com exatidão, não há espaço para o improviso, para a imaginação, para o erro.

Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entre sonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu.


Funes não consegue esquecer mais de nada. Ele lembra de tudo, não porque assim o deseje, mas o faz involuntariamente. Recordar não é mais um ato do pensamento, e, portanto, seletivo, funcionando agora como uma espécie de espasmo, que ele não exerce o menor controle. Ele não é mais capaz de recordar por conta própria. O corpo faz por ele. Ele não decide mais nada. Ele perde o controle sobre aquilo que lhe é mais humano, o pensamento. Ele recorda – sobre tudo e todos – porque é obrigado. A memorização deixa de ser um ato intelectual para se tornar verdadeiramente orgânico. A memória gerada não é mais fruto de um exercício de seleção, mas de uma compulsão mecânica.

Ele não é mais capaz de interpretar. As recordações que seu cérebro anota fazem dele “o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso.” Funes recorda o menor e mais insignificante movimento não porque faça sentido. O narrador lembra que nem sonhar Funes conseguia mais. Ele havia se tornado um completo escravo do passado. O presente já não existia mais. Funes estava preso a um mundo onde não havia espaço para o pensamento e o sonho. Um mundo sem qualquer sentido. E sem pensar, o viver seguia sem vida. Funes não vivia mais o dia, o tempo era todo gasto não em vive-lo, mas em reconstruir na memória o dia que havia passado mas que seu cérebro não deixava esquecer – e o esquecimento é condição necessária para a lembrança.

O narrador ao final comenta que Funes não era capaz sequer de dormir. E “dormir é distrair-se do mundo.” *Leonardo Soares é Professor de História – UFF/Campos

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