Jornal Poiésis
Arroz para sobreviver e flores para ter pelo que viver

Matheus Fernando
Hoje pela manhã aconteceu algo que,às minhas vistas, é quase como um eclipse, raro de se ver. Depois de muito tempo consegui acordar às cinco da matina. Em tempos de quarentena como os do COVID-19, eu decidi que prefiro acordar mais cedo e dormir mais cedo. E por mais que o conselho seja de total reclusão exatamente para impedir o alastrar do vírus, fui aqui na padaria mais próxima… o pão doce de lá é feito no céu!, e às 6:30 a.m. com certeza estaria vazia.
Mas o eclipse não é sobre isso. Desço as escadas daqui do prédio e quando chego perto do portão, em cima do muro. Eis que vejo um singelo e pequeno buquê de flores em cima do muro, e detalhe… havia um cartão nele!
Fiquei por alguns instantes olhando aquela cena, ali parado. Alguns segundos até que um barulho estranho vindo de meu estômago me lembrasse do pão doce. A padaria era perto e quando cheguei lá ainda estava fechada, como de costume. Eu não consigo compreender a finalidade de uma padaria que abre às 6:40 da manhã, realmente. Todavia não tem importância, não hoje. Eu estava muito ocupado com dificílima tarefa de descobrir quem era o(a) destinatário(a) daquele lindo buquê de petúnias, já que a leseira do padeiro tinha me dado alguns minutos.
Fui por eliminação: aqui no prédio somos em seis apartamentos, dois por andar. Para o casal de coroas do 101 com certeza não era, pois moravam no Rio e já que só vinham para Rio das Ostras em feriado … O jovem do 102 também não, tinha acabado de alugar o apartamento e nem tinha feito a mudança por completo ainda.
Também não era para o Léo do 301. Como ele trabalha embarcado já notei pelo carro no estacionamento que a escala dele é de quinze por quinze e, por mais que essa semana ele esteja em casa, com certeza não era. Ele não é casado e mora sozinho. Quando está em casa nos finais de semana até vem uma namoradinha aí. Eu sei disso porque eles trepam antes da meia noite e tudo indica que essa jovem é bem escandalosa visto que geme para o prédio todo ouvir.
Aquelas flores também não eram para a Rosi do 302. É um casal de meia idade que mora junto e o parceiro dentro de um casal com essa idade dificilmente dá flores fora de datas específicas como aniversário de casamento etc. Até porque depois de um tempo dentro do casamento a grande maioria dos homens acha que não precisa mais conquistar suas mulheres, o que é um grande equívoco. Se bem que aquelas flores… a não ser que seja um pedido de perdão depois de uma briga daquelas ou que ele esteja com segundas intenções para aquela noite.
Não. Muito pouco provável! A Rosi tem cara de ser uma feminista daquelas. Das poucas vezes que os encontrei entrando no prédio vindo do mercado é sempre ela que abre o portão com a chave e só falta apontar para ele passar na frente dela. Geralmente é ela quem resolve as tretas do apartamento e se pronuncia no grupo de whatsapp do condomínio - sendo sempre do contra para variar. Mulher assim castra o homem em dois tempos e o Zé dela tem cara de ser um homem daqueles bem banana. E mesmo que fosse por data comemorativa ele deixaria as flores na cama ou em cima da mesa e não em cima do muro do lado de fora.
Para o meu apartamento muito difícil. Terminei há pouco tempo e não vejo nenhum mar à vista. Estou fechado para balanço no momento. E também é meio atípico uma mulher dar um buquê de flores para um homem, eu até que ficaria surpreso e me sentiria lisonjeado pelo ato. Não sou tão machista assim, aliás o pouco de machismo que havia em mim a UFF até que já tirou.
Só sobrou o 202, que por sinal é o apartamento mais provável já que moram a Nanda e a Jennifer nele. As duas - até onde sei - são solteiras e como também estudam na UFF o contato e o círculo de amizades certamente que é grande, aumentando assim as possibilidades.
“Para quem seriam aquelas flores?”...
Enfim, abriu a padaria! Quando cheguei de volta da rua as flores ainda estavam lá. Certamente que eu não poderia entrar sem ler aquele cartão. Certifiquei-me que nenhum curioso me vigiava pela janela, escorei a bicicleta no muro e puxei o cartão: “Arroz para sobreviver e flores para ter pelo que viver, para Cacá”. Então, só dificultou mais minha vida. Passei a mão num raio de uns vinte centímetros e não achei arroz nenhum, alguém pegou o arroz e deixou as flores.
Nossa, que poético! Lembrei do verso de um poemeto de Machado de Assis quando ele diz “Flores me são teus lábios.” É, com a ajuda de Machado tenho quase certeza que o buquê é para uma das meninas do 202.Agora sobre o arroz ninguém me ajuda! Se bem que em tempos de quarentena… mas quando falta alguma coisa de cozinha aqui em casa e que seja rápido eu saio com um copo na mão pedindo emprestado. Se tivesse faltado arroz era só elas pedirem emprestado.
Enfim, entrei e como de costume antes do café eu tomo um banho e assim que terminei desci fingindo que iria pôr a bicicleta no estacionamento e quando cheguei no portão nem as flores nem o cartão - muito menos o arroz - estavam mais lá. Gente! O tempo de um banho! E agora? Como que vou resolver esse problema? Se eu não tiver certeza de para quem são aquelas flores eu não durmo hoje em paz.
Estou pensando em falar no grupo do prédio, como quem não quer nada, que tem um buquê em cima do muro para ver se o dono se pronuncia. Se bem que seria alarde demais, talvez eu me acusaria muito facilmente. Acho que seria mais preciso se eu fosse com um copo pedir um copo de arroz no apartamento das meninas, até a metáfora do arroz seria uma boa desculpa para colher informações. De qualquer forma seria muita intromissão minha perguntar, até porque já chegou nas mãos do destinatário.
De qualquer forma eu preciso arranjar um jeito melhor de descobrir isso, gente! Se eu ficar com essa dúvida entalada na garganta é perigoso até para um infarto… vamos, pensa, pensa, pensa …
Matheus Fernando é aluno de graduação em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. É escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo.