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Araruama, a cidade e seu corpo



Camilo Mota

(foto: Marcelo Figueiredo)


Vim morar em Araruama em 2014. Mas anos antes, um pedaço de seu corpo já me dizia que ali havia um espaço para me compor. As águas da laguna em Praia Seca, o sal, o céu, o vento. Houve ali uma sedução antiga, quem sabe um lugar de poder, como diria o índio Dom Juan Matus nas obras de Carlos Castañeda.


O filósofo Paul B. Preciado, por sua vez, nos conduz a esse encanto que alguns lugares nos causam: “Apaixonar-se por uma cidade é sentir, ao passear por ela, que os limites materiais entre seu corpo e as ruas se desfazem, que o mapa se transforma em anatomia” (1).

Essa cartografia que uma cidade gera dentro de nós faz integrar o ser num fluxo em que cada parte do chão é como uma célula de seu próprio corpo. Araruama, para mim, tem esse mistério geográfico que me percorre enquanto eu a percorro.


O rio Mataruna, triste e poluído, carrega ainda traços da vida que resiste: plantas e pássaros e gente em seu entorno. A laguna que se expande de um extremo a outro, unindo o vento e o mar e o céu, guarda ainda mantos vegetativos que nos remetem aos primórdios, quando tupinambás passaram por ali e deixaram suas marcas no tempo. A história negra contada na pele do povo de Sobara, no distrito de São Vicente, traz outras marcas, de sangue derramado, mas também de liberdade, de resistência. À noite, um barquinho sai para a pescaria. No fim da tarde, os barcos descansam na orla, como corpos cansados. No Centro, o espaço de cimento, metal e corpos em movimento se multiplica em mil sinais: um centro nervoso, pequeno cérebro do sistema econômico, que atrai seus pequenos neurônios-gentes para sinapses de prazer e consumo.


Mas nada tão intenso como os bairros. É ali que a vida pulsa em sua singularidade. É gente que circula de bicicleta, cavalo e carro. São os cães que saúdam uns, e correm atrás de outros, latindo, como a anunciar que a vida exige atenção. É a vizinha que cuida da mãe doente. O outro que toma umas cervejas e escuta música antiga. E tem o funk das meninas que se divertem a balançar o corpo. E também os meninos do tráfico que carregam suas incertezas pelas ruas, deixando um rastro de medo e de compaixão. E o jovem que todo final de semana liga a caixa de som na esquina e fala em nome de Jesus. A vida é plena e intensa.


Uma cidade é uma composição, uma sinfonia (às vezes dissonante) que precisa ser ouvida em todo seu esplendor. Araruama está completando, em 6 de fevereiro, 163 anos de emancipação. Merece, sempre, um olhar acolhedor, que a receba em sua inteireza, com suas belezas e também suas estranhezas, porque, enfim, nós todos somos a cidade em que vivemos, com suas contradições e caminhos que nos levam adiante.


Camilo Mota é psicanalista, escritor e cidadão araruamense.


(1) PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro, Zahar, 2020. Trad. Eliana Aguiar. p. 189.

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