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  • jornalpoiesis

Aquele grito desesperado

Atualizado: 27 de fev. de 2022




Marina Tomassini


Um dos dias que mais chorei em minha vida foi quando soube da morte de uma adolescente congolesa que fazia parte de um grupo que recebia cestas básicas através da igreja católica da região de Gramacho, Duque de Caxias. Eu estava fazendo um trabalho de campo e acompanhava mensalmente o evento, escutando algumas delas em atendimentos psicológicos em grupo e individual.


Recentemente, o grupo havia notado que o número de famílias estava reduzindo a cada mês e depois ficamos sabendo que muitos congoleses estavam partindo para os Estados Unidos e Canadá, passando pelo Panamá. Nesse dia, recebemos uma mensagem por Whatsapp que dizia que uma das meninas do grupo que a gente atendia estava atravessando o canal e havia sido levada pela correnteza. O pai, que carregava ainda mais dois filhos, teria largado sua mão rapidamente para equilibrar uma das outras crianças que estava caindo.


Quando li o que tinha acontecido fiquei muito angustiada, como já andava há alguns meses, desde que me dispus a ouvir essas pessoas que fogem de uma guerra em seu país para encarar outra aqui no Rio de Janeiro. Os cenários de violência se sobrepõem, sem escape para uma existência digna. Negros que deixam suas casas porque correm risco de vida, mas apenas descobrem o que é o racismo bem aqui - no Brasil! - em sua versão mais escancarada e perversa, disfarçada pelo incansável mito da democracia racial. Pessoas que, sem desconfiar, vêm parar no país que mata um jovem negro a cada 23 minutos.


Na pesquisa, encontrei uma séria de relatos que evidenciam situações de discriminação no trabalho, comunidade, saúde, escola, lazer. Ficar no Brasil para que mesmo? Por que não fazer uma travessia cheia de riscos já que não há pertencimento possível até aqui?

Mas, apesar de ler sobre o que tinha acontecido, como tantas outras notícias que nós brancas e brancos lemos rotineiramente acomodadas/os calmamente em nossos privilégios, o que pegou mesmo foi o áudio que veio logo em seguida. A mãe dessa menina havia gravado uma longa mensagem para o resto do grupo da comunidade congolesa que ainda estava por aqui. E embora não desse para entender sequer uma palavra do que era dito naquele áudio, gravado em lingala, o que ouvi foi apenas aquele grito desesperado de dor. Eu nunca mais vou esquecer essa voz.


Eu já estava há mais de um ano lendo só mulheres negras como Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Ana Maria Gonçalves, Maya Angelou, Toni Morrison, Chimamanda, Grada Kilomba, Bell Hooks... Esses livros me reviraram por dentro. Mas foi nesse dia que eu transbordei todas essas vivências, costuradas a fios de ferro - como diz a maravilhosa Evaristo - que já não cabiam mais em mim. Essa voz que é silenciada cruelmente todos os dias! Uma voz enredada por uma narrativa cheia de estereótipos que as encerram facilmente na ideia de mulher negra africana refugiada ilegal. Essa voz feminina que me acostumei a ouvir entoar em cantos tão lindos, imponentes, que soavam como ensaiados nas sobreposições de tons perfeitos, tão ancestrais, tão delas, no início de cada encontro nosso. Muitas vezes se levantavam e dançavam com um gingado gostoso, orgulhosas daquilo que sabiam que faziam muito bem, sempre vaidosas com seus trançados carregados de capricho e muita experiência. Como se houvesse uma pausa no tempo, para que pudessem, então, se reconectar com seu povo, com suas raízes, com sua gente.


Nesses últimos dias essa voz ressoou de novo bem alto. Essa voz que diz: - Não se ausente, isso não acaba nunca! Essa voz que me deixa sem saber o que fazer, porque estou fora dos coletivos. E é essa pergunta que me faço cotidianamente: qual o limite da barbárie para que eu me levante e diga basta?


Marina Tomassini é psicóloga clínica, possui pós doutorado em psicologia social com especialização em migração e refúgio e faz parte do grupo de pesquisa e intervenção antirracista Porta da Lembrança.

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