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  • jornalpoiesis

Apenas um rio



Rosangela Ataíde

(Foto: Julia Caeser/Unsplash)


De certo que a loucura chegará a mim nos dias de ócio.


Eu sei...


Ela já não me espanta com seus ares de rebeldia, de quando a cabeça pesa de tanto pensar nas coisas que ferem e acabo falando sozinha enquanto preparo a refeição.


De certo ela me tomará em tormenta, e só peço ao bom Deus que me tire a memória para que meu ego não seja tão açoitado pela vergonha, quando gritar e chorar sentada ao chão.

Não quero lembrar deste lábio que me beija, se tenho filho menino, quantos eu pari, quantos sepultei.


Nenhuma memória de reuniões familiares entre amigos, justo que os de sangue há muito me deram as costas, ou talvez por indício dessa loucura, eu é que me afastei.

Não quero lembrar as mãos pequenas e cheirosas do neto que ainda não tenho, ou do dia que chorei no altar diante de minha nora.


Certamente a demência me cairá como uma luva e não chorarei mais ao ver o velho cansado de pé no coletivo enquanto o jovem se esparrama sentado com seu fone de ouvido e olha a paisagem.


Certamente me aguarda a ala da psiquiatria, os banhos de sol no jardim, um tinteiro, algumas telas, as terapias musicais e talvez eu aprenda algum acorde no violão manicomial.

Talvez a loucura chegue inesperadamente arrastando minha lucidez ao extremo e eu não a perceba, aí já não sei se terei memórias para esquecer... pois certamente ela fará com que me amarre a alguma pedra e mergulhe no rio, no mesmo rio de folhas castanhas mortas, de águas verde musgo, onde meu corpo castanho, cada vez mais castanho se tornará o rio, salobro como minhas lágrimas.

E não haverá mais lágrimas e sim, apenas o rio.


Rosangela Ataíde é poeta e ilustradora.


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