Jornal Poiésis
Antes que anoiteça
Atualizado: 8 de fev. de 2021

Flávia Joss
Gosto muito de antíteses, acredito que a vida é antitética por si só. As vinte e quatro horas que vivemos se constituem da oposição dia e noite. E enquanto eu refletia sobre essa dialética percebi que durante o dia ficamos mais displicentes. Podemos caminhar sem enxergar coisas óbvias que nos circundam. Quando olhamos diretamente para a luz do sol, ficamos cegos, mais uma contradição. À noite ficamos mais atentos, nossos olhos se acostumam com a escuridão e conseguimos ver. Incoerência?
Pensei nas metáforas que tal antítese pode aflorar, a poesia está repleta delas. O dia é permeado por pressa e pela urgência de coisas que nem sempre são tão urgentes, assim, como a vida. A vida, tão efêmera! Por vezes seguimos procrastinando uma visita a uma pessoa querida, um livro que se quer ler ou mesmo escrever, tantas outras coisas... E quando piscamos, o dia se foi e a noite reclama seu lugar...
A noite nos espanta. O que não foi feito durante o dia, talvez à noite não se fará. Uma recordação ilumina minha mente neste momento, a canção Trem Bala, de Ana Vilela, um sucesso, confesso que até enjoei. E embora ande de mãos dadas com o lugar comum, reconheço que seus versos estão cheios de verdade. Aproveitar cada segundo singelo da vida, amar, ouvir o outro, valorizar pequenas conquistas, ser presenteado com a beleza implícita no cotidiano. Assim, quando a noite chegar, com suas duras mãos, das quais não temos como escapar, possamos falar como Manuel Bandeira, em seu belíssimo poema Consoada “O meu dia foi bom, pode a noite descer.”
Flávia Joss é Professora de Língua Portuguesa e Literatura, especialista em Gêneros textuais e Interação. Possui cursos de aperfeiçoamento nas áreas de Arte& Espiritualidade, Escrita Criativa e Poesia Falada.