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Anitta, a musa e o demônio
Atualizado: 29 de mai. de 2022

Camilo Mota
Toda parcialidade revela um rompimento com o eixo comum dos acontecimentos. Os fenômenos de mídia contemporânea reforçam esse traço que evidencia ainda mais os processos de recalque que atravessam a sociedade em todas as suas camadas. Por que, nesse sentido, Anitta incomoda tanta gente?
Ao alcançar o topo de uma lista de um aplicativo de música, ao estar em evidência há muito tempo no cenário cultural como uma expressão viva de força feminina em ascenção, ao expor e usar o próprio corpo para revelar o alcance da experiência sensorial sob uma perspectiva de mulher, a jovem cantora abala os alicerces do bom comportamento, ditado, certamente, por uma hegemonia masculina, patriarcal, e altamente preconceituosa quando qualquer mulher os questiona. Não foi diferente com Madonna nos anos 80. Do ponto de vista moral, acontece uma demonização do corpo, um agenciamento coletivo baseado na má consciência.
Quem, afinal, define o que nossos corpos devem ser? Como devem ser moldados? Quem fala em nós quando nos incomodamos com alguma expressão que atravessa nossas crenças mais enraizadas num contexto cultural marcado pela submissão a normas e padrões?
O caso Anitta é apenas um sinal desse modelo que é imposto à sociedade na sua ânsia de ser perfeita, ordenada, regrada, subjugada. Quem não se adequa ganha um rótulo, recebe uma chuva de pedras (um complexo de Geni que está latente na cultura brasileira), fazendo gozar as forças reativas que insistem em recalcar desejos, negando a própria vida.
Mas também inspira, faz soar o fluxo da diferença num mundo que está cada vez mais buscando uma conformidade, um modelo único, certo e moralmente aceito. Anitta é vulgar? A vulgaridade também liberta.
Camilo Mota é psicanalista, terapeuta holístico, poeta e escritor, editor do Jornal Poiésis. Instagram: @camilomota_psicanalista. Site: www.camilomota.com.br