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  • Foto do escritorJornal Poiésis

Andréa Rezende, poesia para enfrentar a pandemia



Camilo Mota

Foto – Nilda Pires


Natural de São Gonçalo, morando em São Pedro da Aldeia desde 2014, Andréa Rezende é formada em Letras e vem se projetando no cenário literário com vários prêmios, entre os quais Talentos Helvéticos Brasileiros (2017), prêmio Monteiro Lobato – melhores poetas, da Literarte (20190 e primeiro lugar no Concurso literário virtual da Academia Contemporânea de Letras – categoria poesia (2020). Em tempos de pandemia, sua produção ganhou novo vigor, que chega agora para o público através do livro “Quarentena de poemas”, disponível em formato e-book no site da Amazon.


Poiésis - Andréa, o assunto do momento é a pandemia do coronavírus. Todos os setores da sociedade estão envolvidos ou impactados mundialmente, e muito significativamente o setor cultural. Nesse sentido, como a literatura contribui para o enfrentamento desta realidade, tanto do ponto de vista do escritor quanto do leitor?


Andréa Rezende – Acredito que a arte de um modo geral, seja para quem a produz, seja para quem a aprecia, é sempre fundamental na construção ou reconstrução – visto o nosso contínuo inacabamento – da humanidade. Diante de uma pandemia como a que vivenciamos, atípica, inesperada e, portanto, transformadora de hábitos e rotinas, tal valor é ainda mais relevante. A Literatura, que é arte também (popular na mesma medida que discriminada, no sentido de que somos unânimes em reconhecer a importância da leitura, de todo o tipo inclusive, mas poucos ainda possuem o hábito) tem a função tanto de escape, leveza e sublimação, quando nos apertam as dores, medos e perdas; quanto de despertamento e reflexão, quando precisamos de empatia, criticidade e posicionamento. Inclusive pra mim, que a produzo, pois nesse processo devo estar em constante associação, enquanto artista, ao meu tempo e seus desdobramentos a fim de se dar, de fato, a partilha ou troca. Ressalto aqui a minha crença de que a arte só acontece assim, quando o receptor da minha criação passa a ser, entendida a mensagem, também seu criador, seu coautor. A partilha descrita é isso: a elaboração da ressignificação dada pela interpretação de quem a recebe.


Poiésis - Pelo menos para você esse período parece ter sido mais criativo. Tanto que você está lançando um livro. Fale um pouco sobre a elaboração deste “Quarentena de poemas”, já disponível no site da Amazon (https://amzn.to/30cqV1I).


Andréa Rezende – Não foi produtivo desde o início. Tive meu período de reclusão criativa, além da reclusão física a que fomos e estamos (visto que ainda vivemos a pandemia) submetidos. Foi assim na primeira quinzena. Eu conseguia até ler, mas escrever não, e as duas ações sempre estiveram associadas para mim. Quando tentava, achava tudo sem sentido, talvez porque a conscientização do que estamos vivendo fosse tão abrupta e chocante que nada mais parecia interessante. Mas a escrita sempre me foi também um ato terapêutico, uma extenuação dos sentimentos, percepções e emoções mais aflorados. Eu não precisava deixar de pensar ou viver a notícia em questão da pandemia para me inspirar. Inspiração não é só beleza, é inquietação, é urgência. É readaptável também! Dei-me conta de que a profusão de acontecimentos externos/sociais e internos/pessoais, gerados pelo novo momento podia sim ser matéria de poesia. Comecei a produzir intensamente e totalmente voltada para o próprio tempo corrente. Eu havia me programado para lançar meu segundo livro físico de poesias este ano, após 04 anos do lançamento do primeiro, “Lira Minha”. Contudo, novos poemas nasceram e sobrepuseram-se, dadas as circunstâncias. Quando me dei conta, havia muitos deles prontos e, incentivada pela família e amigos, tomei a decisão de lançar um livro em formato digital. Não havia 40 poemas, mas havia quase 30. A ideia de virarem 40 veio de uma amiga poeta e poética. Um contexto lúdico com o nome quarentena. O formato e-book também foi um desafio, pois tenho franca preferência pelo livro físico. Tive, inclusive, muita dificuldade em criar conteúdo digital no início do isolamento social. Entretanto, tenho um coletivo de difusão literária, o Flores Literárias, e foi necessário, a fim de nos mantermos ligados, seria mais apropriado dizer conectados, fazer lives semanais. O que foi uma barreira no início (sentimento retratado no poema “Vivo ao Vivo”) tornou-se um prazer descoberto, como acredito que possa ter acontecido com muitas pessoas neste período. Acabei pondo em prática também um projeto antigo de criação de um canal de conteúdo literário, no You Tube, o “Entrelaces Literário”. A quarentena moveu e encorajou minha criatividade, acho que como forma de resistir, se reinventar, e, inevitavelmente, se autoconhecer, de novo e de novo...


Poiésis – O escritor produz na solidão, mas sempre conectado com o mundo, pois a escrita implica a existência do leitor. Nesse aspecto, como você situa a sua produção literária e como ela contribui para si e para a sociedade em que está inserida?


Andrea Rezende – Creio que já até antecipei um pouco essa resposta na primeira. Mas há sempre o que se pensar sobre esta interação autor/obra/leitor. Eu demorei muito para me reconhecer e me mostrar como escritora. Foram anos neste processo. Creio que eu sou uma pessoa demorada. Eu demoro nas singularidades, não no coletivo, se é que me entendem. Não sou demorada no sentido de atrasos físicos, profissionais ou relacionais. Sou até bem dinâmica, pontual e chata com horários em tarefas práticas, objetivas e corriqueiras, como uma boa virginiana geralmente o é. Mas se existe, preciso descobrir o meu signo literário, porque ele é outro, com certeza! Sou alongada em subjetividades. Agora que já não sou mais uma menina, tenho experimentado certa coragem em me lançar, o que não é apenas uma atitude ou conquista pessoal, mas uma consciência adquirida por anos de estudo, ministração e prática da Literatura. Esta consciência, quase catártica, eu diria, é justamente a da liberdade textual no outro quando se partilha uma obra. É interessante e muito familiar pra mim a forma como essa pergunta foi elaborada, pois escrever considerando além de você é um aprendizado. No terceiro parágrafo da introdução do meu primeiro livro, Lira Minha (já citado nesta entrevista), abordo esta percepção - com licença poética de mim mesma no uso dos femininos ao final da citação -: “... Este universo, a princípio tão intrínseco e solitário, foi tornando-se atingível e o desejo de compartir chegou, sim, porque arte, qualquer uma, é partilha, começa na solidão do indivíduo, mas perpassa essa esfera e quando tencionamos mostrá-la , passa a ser de todos e faz um todo: quem a recebe passa a ser também seu dono, sua dona, seu coautor, sua coautora.”


Tudo isso me faz lembrar também a segunda estrofe do querido poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa: “E os que leem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/Mas só a que eles não têm.” Não será diferente, desejo, com “ Quarentena de Poemas”: são as minhas inquietações, lutos, angústias, alegrias, descobertas, indignações, raivas, adaptações, aceitações...Emoções, enfim, afloradas por este período, que se estende além do “´previsto”, em forma de poemas. Emoções, portanto, revistas, refletidas e reavaliadas. Mas espero que sejam representativas para quem as ler, que sejam um espelho perfeito ou invertido, porem não só meu. Vivo este tempo com vocês, desejo, então, que nestas artes das minhas palavras estejam o outro, estejam vocês, estejamos nós.


Poiésis – Você percebe alguma singularidade no tocante a uma voz feminina na literatura? Isso ocorre em sua escrita?


Andrea Rezende – Sim, sem dúvida percebo, mas com muita luta, até nesta percepção. A mulher sempre escreveu ou, seria melhor afirmar, sempre quis e foi capaz de escrever ou praticar qualquer outra arte. Todavia, nem sempre lhe foi permitida a escrita, e as que insistiram e “ousaram” praticá-la, fizeram-na através de muita luta e resistência, como sabemos. Foi assim, na verdade em todas as esferas, incluindo a literatura/ou representadas pela literatura, sejam elas sociais, culturais, políticas, econômicas, educacionais...Aliás, há uma alguma área em que a mulher se encontra inserida ou repensada hoje que não tenha sido a partir de muita peleja e desconstrução de papéis? Não desejo, entretanto, fugir à pergunta que ansiei por responder, é que é sempre muito complexo para uma mulher avaliar a voz feminina numa sociedade ainda tão machista. Ao mesmo tempo, é uma oportunidade, e não deixarei passar: Sim, há uma singularidade, sobretudo, porque precisa haver. Há uma singularidade porque ainda não pluralidade de ideias quanto ao gênero. Apesar das tentativas e já conquistas. Precisamos das vozes femininas nos textos, sejam elas personagens de narrativas ou eu-líricos de poemas, para que as questões femininas tenham vez, para que o patriarcalismo social e cultural seja encarado e, consequentemente, enfrentado. Para que a misoginia recorrente no mundo e, infelizmente, em especial em nosso país, seja denunciada. Precisamos dessa singularidade para que as diferenças de direitos, tratos e respeitos acabem, e, as possíveis diferenças físicas e/ou psíquicas, emocionais não continuem sendo a razão de feminicídios. Precisamos adentrar no universo feminino, inclusive nós próprias, mulheres, para que reconhecida sua existência, ela coexista com a masculina em igualdade, interações e respeito. Permito-me dizer que mais que uma singularidade feminina, na minha literatura se encontra uma singularidade feminista (ainda que em constante aprendizagem e evolução) que se faz necessária - como se fez sempre na história - para que a vida, existência e criação da mulher resistam e sejam satisfatórias para ela própria.


Poiésis – Enfim, começamos falando de pandemia e podemos terminar falando do após, do futuro. Como estão seus projetos daqui para a frente e como você enxerga o cenário para os próximos meses? Teremos um novo normal, um normal velho, ou o melhor mesmo seria apostar no reinventar-se?


Andréa Rezende – O primeiro projeto é sobreviver a tudo isso. Tanto física como emocionalmente. Tenho me precavido. No primeiro quesito, tem me sido possível e necessário fazer a quarentena. No segundo, além do amor das minhas pessoas, tenho a arte para me salvar, sobretudo, a literária, mas não apenas ela. Cuidando desses dois primeiros projetos, tenho sim, muitos outros. Mas o interessante é que muitos deles estão ocorrendo durante e apesar da pandemia. Além deste livro que estou lançando, iniciei um canal literário, conforme já relatado nesta entrevista. Também ganhei , há cerca de três semanas, uma coluna de crônicas no jornal Folha dos Lagos. No próximo mês, o Flores Literárias, coletivo que coordeno junto a uma amiga também escritora em Cabo Frio, realizará a 5ª edição da Flic (Festa Literária Cabo-friense), dessa vez em formato virtual porque é o possível no momento. Estamos, inclusive, com edital aberto para a Antologia Poética Digital Flores Literárias, cujo tema harmoniza com essa expectativa quanto ao pós: “ Por dias melhores”. Estou em dois clubes de leitura, que se encontram também virtualmente. O único projeto de fato que tenho “agendado” para o futuro, é o meu próximo livro de poesia “Agridoce”, talvez este espere a pandemia passar. Todos os demais projetos têm ocorrido já, o que me faz lembrar a primeira estrofe do poema “Mãos dadas”, de Drummond:” Não serei o poeta de um mundo caduco/Também não cantarei o mundo futuro/Estou preso à vida e olho meus companheiros/Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças/Entre eles, considero a enorme realidade/O presente é tão grande, não nos afastemos/Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” Não acredito em normais faz tempo. No país em que a gente vive, especialmente nos últimos tempos e acontecimentos, mesmo antes do coronavírus, tem sido necessário reinventar-se diariamente. Talvez a vida seja mesmo sempre o recomeço. Considerando a “enorme realidade da pandemia”, essa necessidade foi aguçada. E ela está acontecendo. É uma enorme oportunidade de se desconstruir e reconstruir, mesmo sendo muito doloroso. Muitos não vão mudar ou melhorar, infelizmente. Mas quem conseguir questionar-se e inquietar-se vai precisar de reinvenção sempre. O presente é maior, amanhã é hipótese. Eu tenho o hoje, com pandemia, com isolamento, com dores, com perdas, com tédio, com saudades, com ansiedades... Mas nunca sem a minha arte, nunca sem a literatura e, portanto, nunca sem alegrias.


BREVE ANTOLOGIA DE POEMAS DE ANDRÉA REZENDE


Poema-cura

Andréa Rezende


A palavra sempre me curou.

Quando não era possível dizê-las,

eu as ouvia:

o tom, o som,

a expressão e o sentido.

E ia remendando-as,

reconstruindo-as,

costurando-as em minha vida,

entrando em cada uma

como se naves fossem,

viajando para além de mim

ou para mais dentro de mim.


Outras vezes,

em vez de dizê-las,

(agora por escolha),

eu as escrevia,

dada a timidez e a introspecção.

No papel, tornavam-se minhas

Um reino, um país, um resgate

Meu domínio, minha evolução.


Quando tudo doía,

e tudo um dia dói,

ela era o meu remédio.

Amargo, doce, enjoado, ácido.

E as dores, os risos,

as cismas, os sorrisos

iam sendo tratados, aliviados

numa infusão de folhas-palavras,

líquidos-dizeres,

comprimidos-mensagens,

gotas-vivificadoras,

cápsulas-protetoras,

remédios-poesia.

Eu as tomava, eu as ingeria

E elas me saravam.


E quanto mais remédio-palavra eu descobria,

mais eu queria, de mais eu dependia,

não me bastou escrevê-las, modificá-las,

metaforizá-las, figurá-las.

Precisei estudá-las.

Queria promovê-las, desvendá-las.

Mas quanto mais as conheço,

mais elas se desdobram.

Mais inatingíveis,

enquanto as atinjo;

mais se multiplicam,

enquanto as capturo;

mais se libertam,

enquanto as possuo;

quanto mais a gramática as racionaliza,

mais incoerentes me parecem.

E por isso mais belas, mais elas

Sou delas!


O meu remédio não tem receita,

medida, apreensão.

Quanto tudo se perde, se vai

ou me escapa,

a palavra ainda remedia o meu tempo, descentraliza todos os sentidos

pela arte da sua conexão.

E eu sigo tratando

essa minha doença de existir

pelas letras, contínuo elixir.

E vou sendo salva

E vou sendo sã

Permaneço palavra

Existo poesia

Lirismo-revolução.


A Casa

Andréa Rezende


Presa entre as paredes construídas

A vagar na varanda inacabada

Temporariamente alienada

A cabeça sob a almofada

Ou excessivamente informada

A fitar telas e mais telas

Diante da terrível ocasião

A casa sou eu.


Caso meus sentimentos

Outrora separados

Ora, sou angústia e apreensão

Ora, sou esperança, libertação

São tantas prisões fora da casa

São tantas saídas só pela casa

E a casa, a casa sou eu


Indignada com a política em questão

Correndo contra o tempo virtual

Ou pulando corda com as crianças no quintal

A casa sou eu.


Densa a falar conteúdos em vídeos

Ou imersa na solidão

Buscando a razão do sentido existencial

A casa sou eu.


Contando histórias para as meninas

Ouvindo as memórias da minha mãe

Chorando sozinha escondida

Ou rindo do humor descomunal

A casa sou eu.


Aprendendo o novo de novo

Pintando uma borboleta com cautela

Cantando uma velha canção com elas

Ou amando na cama encostada à janela

A casa sou eu.


Contemplando cada rosto querido

E por cada um temendo e sentindo

Acreditando na ciência e na razão

Acreditando na fé e na oração

A casa sou eu.


Farta de tanto conteúdo digital

Suavizada por um poema desproposital

Buscando uma forma de não ser igual

E evoluir sem certezas ou promessas

A casa sou eu.


Sou eu, sou eu!

A casa sempre fui eu

E agora com a casa tão em casa

Pelo acaso da contradição

Eu fecho e abro minha casa

E me suporto, e me alinho

Tentando não ser mais que um mero caso

De uma casa que não se conheceu.


Sou eu, sou eu

A casa sou eu!


Em todos os meses

Andréa Rezende


O setembro é amarelo

Mas você merece todas as cores

Merece a assistência e o sentido

O ouvir e o abrigo


Merece vencer esse duelo

Entre o que lhe disseram

E quem de fato você é Merece o beijo, o abraço, o cafuné

E o silêncio de palavras tolas Trocadas pelo ouvir amoroso


Você merece, em todos os meses

A prevenção Desde o verão de janeiro

Que talvez lhe pareça estranho de tão solar

Ou a alegria de fevereiro

Mesmo que lhe soe insana e vulgar

Ao inverno de agosto

Sendo mais que um triste conforto


Merece o afeto de maio

Plantando sementes

Abrindo em abril

Colheitas, de repente

Merece a doçura de junho

E as festas de julho

As flores de outubro

As aquarelas de novembro

E acreditar em dezembro


Você merece em todos os meses a empatia, o acolhimento

Merece que eu não te julgue

Que eu não te anule

Que eu não te fale do que não sei

Você merece que eu me importe

E que esta importância perdure

Além de setembro Você merece amor e amar

E conseguir vislumbrar

Dias de poesia

Que ainda não foram escritas ou lidas

Pra sua história resgatar


Você merece vida!

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