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A tal da angústia
Atualizado: 21 de dez. de 2022

Matheus Fernando
Recentemente percebi uma certa angústia que me visitava todos os dias pela manhã. Não se tratava de uma crise existencial, ou daquele clássico vaziozinho que visita o jovem quando vai chegando o finalzinho da tarde do domingo. Incômodos como estes já são demarcados, conhecidos. A angústia que me visitara com frequência era nova e eu ralei para identificar donde ela vinha, de qual bueiro saia e o que eu tinha que fazer para atenuar a desgraçada.
Minha intenção não era extirpá-la de uma hora para outra – como se isso também fosse possível. Um dos bons aprendizados que a vida de psicólogo me trouxe é que, na verdade, quando a angústia aparece em cena (na vida de um paciente, por exemplo) uma função pontual do psicólogo é a de, inclusive, sustentá-la durante um certo tempo. Pois é exatamente quando ela enfim aparece que se torna possível trabalhar questões das quais o indivíduo faz de tudo para correr.
Mas o que me intrigava, e que eu percebera já de início, é que se tratava de uma angústia nova na família. E que a mesma se fazia presente todos os dias pela manhã, sentava para tomar café comigo já cedo e era isso que me agoniava. Já pela manhã? Eu não podia aceitar isso passivamente. Das angústias que eu conheço e que já fazem parte da família, todas costumeiramente – quando me visitavam – aparecem mais do final da tarde para a hora de dormir, à noite.
Decidi parar de olhar para ela e comecei a olhar para minha rotina. Com certeza tinha algum ratinho atrás de algum sofá e eu precisava encontrá-lo. Eu geralmente durmo cedo, entre 21h e 22:30h. Acordo quase sempre cedo, entre 5h e 6h da manhã. Eu mesmo que montei esses horários, a meu bel prazer. Acordo cedo, alongo, banho gelado para tirar o espírito da madrugada e da cama de meus ombros, café. E é aqui que ela se aprochega. No café.
Eu tomo o mesmo café todo santo dia. Se trata de 4 ovos + 4 colheres de sopa de frango desfiado e temperado fritos numa pitadinha de manteiga e um fiapo de requeijão + uma xícara cheia de café preto, bem quente. Eu ralei para montar um café da manhã de modo que eu não estivesse com a mesma fome da madrugada uma hora após essa primeira refeição. E num desses dias de checagem de rotina, tentando identificar por trás de qual sofá saia o tal ratinho que me trazia tamanho incomodo já cedo ...
Minha omelete de frango com ovos já estava pronta, o café também, mas quando eu fui pegar uma xícara para intentar matar a fome da madrugada, eis que não encontro uma xícara limpa. Achei aquilo um absurdo. Como assim não havia uma xícara limpa para eu tomar o meu café? Quem sujou todas as xícaras? E pior, quem teve a audácia de sujar toda minha prataria? Como não há o raio de um garfo limpo?
Neste momento não se tratava mais de angústia, era raiva mesmo. Alguém estava irrompendo meu precioso e proteico ritual de café da manhã. Foi quando eu lembrei que moro sozinho. E que possivelmente foi eu mesmo quem sujou no dia anterior. Mas ainda assim, fiquei com aquela pulga atrás da orelha, ou o rato atrás do sofá. Tive que lavar uma xícara e um garfo apenas para tomar meu café da manhã, ou dependendo do nível da raiva, lavava a louça toda, com aquela água gelada já cedo, e quando lavava toda a louça, o café já estava frio. E quando eu sentava para tomar meu café frio, quem estava sentada à mesa comigo? Ela mesma, a desgraçada, a tal da angústia.
Fiz alguns testes para confirmação de tal hipótese. Passei a lavar toda a louça antes de dormir de modo que quando eu acordasse a pia estivesse brilhando, me esperando limpa para o café já cedo, assim como a cozinha organizada. Notei que no dia seguinte, tudo fluiu, nada de angústia. O dia foi melhor, mais leve, sem interlúdios. E na medida em que fui testando, dia sim, dia não. Um dia eu acordava e a louça estava na pia, noutro, cozinha limpa e organizada ... fui ratificando minha hipótese. Se tratava da pia suja e tudo que me competia fazer durante, antes ou depois do café. Achei a fonte da desgraçada, achei o ratinho atrás do sofá.
Menos uma angústia para lidar, essa até que foi rápido. Só faltam outras 49. Dica de ouro que passei a dar para todos meus amigos: a vida fica melhor quando você lava a louça antes de dormir!
Matheus Fernando é psicólogo e escritor que transita entre gêneros literários como poesia, crônica, conto, peça, ensaio e artigo. matheusfernando.contato@gmail.com